“- Na frente de vocês está um dos mais conhecidos analgésicos do mundo. Semana que vem tragam seus cadernos de práticas laboratoriais com os relatórios”.
Perguntei qual era esse “remédio”, ela respondeu, “vocês o conhecem pelo nome de fantasia: Aspirina”!!!
Claro, o tal “nome de fantasia” é referente a uma propriedade intelectual, uma patente da empresa Bayer.
É assim que iniciamos o significado das coisas. Não tenho a manifestação da náusea existencial sartreana apenas pelo consumismo em si. Existem muitas coisas, ou de simbologias ligadas a significados abstratos, por exemplo, um colar, ou um chaveiro, mas essas coisas não são necessárias para nossa sobrevivência, ou mesmo bem –estar.
O problema não é esse. As coisas sobre as quais escrevo neste post dizem respeito à necessidade de viver. Remédios e alimentos estão ligados a supressão da dor e manutenção da vida.
Estar acometido de uma doença grave, ou passar fome são estados profundos de miséria e muitas vezes, quando em estado leve, levam-nos a ver a vida de forma mais séria. Quem aqui já não entrou em estado de reflexão profunda quando acamado estava? Quem aqui não sentiu, nem que seja por algumas horas, a necessidade de saciar com urgência os pedidos da fome molecular de cada uma de suas células?
Ademais, nossas farmácias e supermercados atuais são muito similares com prateleiras repletas de embalagens coloridas, ar condicionado, música ambiente e muita, muita propaganda em cada embalagem. Há itens comuns em ambos, por exemplo, leite em pó, sorvete, desodorante, até brinquedos são encontrados em supermercados e farmácias!!!
Pois bem, nosso empreendimento humano da ciência e tecnologia deveria ser um pouco mais racional, pelo menos teoricamente. Nas tribos de caçadores-coletores cada um é responsável por si e todos os outros. Remédios tradicionais e alimentos são divididos e compartilhados. Todos devem ter acesso a isso. Imaginem um “pajé” que só cuidaria de alguém de sua própria tribo se obtivesse pagamento por isso? A tribo como um todo deve estar forte e resistente para lidar com as intempéries da natureza e eventuais conflitos com seus rivais.
Um ameríndio não consome uma fantasia, mas sim recursos importantes para sua sobrevivência e desenvolvimento.
Bem, sabemos que nosso mundo atual é muito diferente disso.
Certa manhã, eu e meus amigos estávamos na “Cantina de Seu Antônio – A Pioneira”, lá no Centro de Ciências Exatas e da Natureza da UFPB/ João Pessoa - PB. A profa. Cristina Arzabe (atual pesquisadora da Embrapa e professora da UFPI) chegou e comentou conosco que havia deixado para vender suas frutas cristalizadas. Compramos algumas e no momento ela nos disse o seguinte:
- "As frutas que cristalizo são deliciosas, domino todo o processo de fabricação caseira, higiene e seleção criteriosa das frutas. Mas tenho um problema com a embalagem! Não há nada de errado nelas assim como vocês vêem – estavam muito bem embaladas em recipientes plásticos transparentes –, porque elas não tem cores. Eu não tenho uma marca de fantasia, não possuo dinheiro para promover marketing e, dessa forma, nenhum grande supermercado que tentei vender meu produto aceitou comercializá-lo".
A professora Arzabe entendeu a face cruel do mundo: sem fantasia comercial, ou como os profissionais da área falam, sem a construção artificial de "um envolvimento emocional dos consumidores”, dificilmente qualquer que seja o produto terá aceitação em vendas.
Ok, você pode falar para si mesmo, as verduras de minha casa não tem isso. Compro na feira livre diretamente do agricultor. Você compra alface e não uma fantasia. Todavia, nem todas as pessoas possuem essa oportunidade. Especialmente se elas viverem em grandes centros urbanos. Até mesmo as hortaliças hoje estão em prateleiras de consumo dos supermercados. Não há uma embalagem colorida nos tomates? Mas a escolha do estabelecimento para as compras seguiu os mesmos critérios e influência da propaganda que seus produtos postos à venda.
A abundância e diversidade de alimentos que disponibilizamos hoje estão refletidas em nossa crescente obesidade. Não é pouca coisa! Itens indispensáveis e essenciais para nossa sobrevivência são transfigurados em coisas de marketing e símbolos de status social. Ou você acha que colocar pó de ouro na comida a torna mais “deliciosa”?! Se você nunca ouviu falar disso é porque deve ser tão pobre quanto eu. Nos restaurantes de luxo que nós não frequentamos (p.e., o Emirates Palace Hotel, em Abu Dhabi) isso é uma realidade... de como algumas minorias humanas opulentas de hoje podem se tornar acumuladoras de bens e serem consumidoras fúteis ao extremo.
Voltemos para o resultado de minha aula de química orgânica. O ácido que sintetizamos tem uma aparência de um pó branco. Para transformar isso em remédio foram realizadas muitas pesquisas até chegar à dosagem certa, com componentes associados de forma adequada e tudo comprimido... em pílulas!
Podemos sintetizar esse analgésico em casa? É possível, embora perigoso e desaconselhável. Mas, repito, uma pessoa com treinamento correto é capaz de realizar essa experiência. Na verdade, é uma prática tão simples que é feita com alunos de ensino médio (em um laboratório de ciências adequado e sob a orientação de um professor capacitado).
Nossos pais e avós herdaram conhecimentos tradicionais do uso de recursos naturais para tratar nossas enfermidades, assim como para alimentação.
Antes da síntese do ácido acetilsalicílico em laboratório, essa substância era/ e é obtida naturalmente da casca dos troncos do salgueiro (Salix alba). O pó da casca dessa árvore já é utilizado medicinalmente por nós humanos há mais de 2.000 anos atrás. Hoje, industrializamos essa substância em misturas diferentes, travestidas por fantasia e um poderoso marketing.
Isso nos abate com tanta força, que para tentar retirar essa parte de marketing dos medicamentos, o Brasil lançou a possibilidade de acesso aos remédios essenciais com preços mais acessíveis. Os mesmos fármacos, mas sem as fantasias comerciais de caríssimas campanhas publicitárias. Entretanto, o próprio governo na época teve que fazer uma campanha publicitária para informar a população dessa diferença entre o medicamento real mais barato (genérico) e o outro igual, mas com a marca de fantasia patenteada. Propagandas essas que são de certa forma contra propagandas!!!
Mesmo assim, nós sabemos como é difícil sair de um exame médico com uma receita na qual está descriminado apenas o nome de fantasia do medicamento. Alguns médicos possuem parcerias com laboratórios, do mesmo jeito que um jogador de futebol pode ser patrocinado por qualquer empresa. Resultado, algumas pessoas resistem à idéia de tentar obter o genérico do medicamento recomendado, porque o médico não indicou um fármaco e sim uma “marca de fantasia”!!!
Claro, não vá ficar doente por causa disso! Apenas tenha um pouco de atenção no mundo e em todas as ações sobre você. O universo da propaganda explora todo o conhecimento sobre nosso comportamento humano. Se há um lugar onde nos veem como animais é nesse mundo de consumo. Exploram cada instinto, cada detalhe de nossa natureza mais selvagem escondida em nossos corpos. Climatizam tudo (na temperatura ideal para humanos), acalmam-nos com música ambiente, mostram-nos cores, muitas cores e luzes. As marcas de fantasia à frente trazem a recordação das pessoas felizes dos comerciais e outdoors, algo que não é para todos e isso traz a sensação de status... Consumimos tudo quase que instintivamente!!!
Eu nunca comerei ouro, mesmo se tivesse dinheiro para tanto! Assim como também não troco um bom suco de mangaba por “refrigerante” algum (quando possuo a possibilidade da escolha).
Na dor... contemplamos nossa fragilidade. Ao adoecer entramos em contato com o mundo real, sem fantasias de atores com sorrisos em um ambiente artificial de paz e saúde permanentes.
Na fome... contemplamos até onde a miséria pode ser difícil de entender, pior ainda vê-la existir em meio ao excesso e desperdício de toneladas de comida todos os dias.
...
"As coisas mais profundas têm mesmo ódio à imagem e ao símile." (Nietzsche, 1997: 45 - Além do Bem e do Mal. Editora Companhia das Letras)
O significado das coisas!!!
2 comentários:
W.,
Isso me lembrou uma historia de uma criança em um grande centro que, ao ver pela primeira vez uma galinha de verdade, arqueou as sobrancelhas, olhou para a sua genitora e disse: “Olha, mãe, uma Kinor!!!”.
Abs,
Lycurgo
KKKKKKKKKKKKKKK!!!
Seu humor é único, Lycurgo!!!
Grande abraço!
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