domingo, 14 de março de 2010

Diálogos: A Milena Inesperada

Passo ao meu passo curto e devagar pela alameda da praça. Um dia esplendoroso se manifesta com muita luz, calor, vento e cores das coisas vivas. Ando olhando para locais e coisas que ninguém costuma olhar. Mesmo assim, percebo à minha frente, sentada em um banco, uma mulher com a cabeça entre as suas mãos. Normalmente, e por incrível que pareça, formigas, besouros e pequeninas aranhas chamam mais minha atenção do que meus pares de espécie. Entretanto, aquela mulher de cabelos negros está tão só, tão frágil entre suas mãos, que finjo cansaço e sento na ponta contrária do banco onde ela está.

Como qualquer animal, respeito o espaço dela. Já notaram que não é preciso grandes mentes humanas para fazer isso? É, todos respeitam instintivamente o espaço dos outros. Pelo menos, os animais “irracionais” nos ensinam... Educam em exemplos a nós, grandes chimpanzés religiosos e de pelos ralos. Pequeninos animais na maioria do tempo, respeitam uns aos outros:

Eu tento fazer o mesmo! O mesmo do mesmo! Aproximar-se, respeitosamente e... demonstrar carinho e empatia por essa mulher sozinha.

Quebro o silêncio:

Eu – Bom dia!!! Você sabe que horas devem ser? Meu relógio quebrou!

Maria – Não tenho relógio!

Eu – Ah! Desculpe-me interromper seu silêncio! Posso fazer outra pergunta?

Maria – Olha, por favor, não me incomode, especialmente se você é um daqueles ridículos que não podem ver uma mulher sozinha.

Eu – Eu sou um homem comum, por isso sempre estarei preso à média dessa mesma “normalidade”. Eu sou um desses mesmos “ridículos”. Verdade, mulheres me atraem, mas, não ria de mim, besouros me são muito mais fascinantes.

Maria – Kkkkkkkkkkkkk!!! É só ficar sozinha para atrair ou um tarado, ou um louco!

Eu – Se é o que pensa de mim e todos os outros, tudo bem! Eu compreendo sua estranheza!

Maria – Desculpa! Eu não quis te ofender. Se você é “comum” como disse, embora estranho por essa predileção por besouros, compreenderá minhas reservas e até meu deboche explícito, não é?!

Eu – Certamente! Por favor, eu não sou assim tão estranho. Tenho a pele parda, uso óculos, não sou belo e até baixinho...

Maria – Não entendo aonde você quer chegar!

Eu – Que seria mais fácil inspirar confiança se fosse branco, alto, olhos azuis, simétrico...

Maria – Kkkkkkkk!!! Entendi, eu li esses livros populares, “Por que homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?”, ou mesmo um outro, “A culpa é da genética”. Também tem reportagens em revistas e até vídeos no You Tube, ou vendidos em bancas de revistas.

Eu – Ok, mas tem livros melhores do que esses que você citou. Por exemplo, há “Além de Darwin”, que possui um texto direto, simples e brilhante. Se não leu esse livro ainda, eu recomendo! Bem, em todo caso, eu pensei que você iria me dizer que tenho baixa estima, ou complexo de inferioridade!

Maria – Nem de longe! Você é atrevido, está aí tentando conseguir minha atenção. Todo delicado e sensível. Parece o Franz Kafka em pessoa! Isso pode ser um nerd, mas nunca alguém com baixa estima!

Eu – [rsrsrsrs] Eita, que nunca me elogiaram assim! Apenas porque puxei conversa e fui sincero comigo mesmo!

Maria – Quantas pessoas falam o que você me disse sobre prestar atenção em besouros?

Eu – Disso eu sei! Na maioria das vezes converso muito... apenas comigo mesmo!

Maria – Eu também!

Eu – Não falei meu nome, desculpe-me por isso. Chamo-me Waltécio.

Maria – Kkkkkkk!!! Ta explicado tudo, além de nerd, tens um nome estranho!!! Meu nome é Maria! Prazer em te conhecer!

Eu – Pelo menos você está rindo desde que começamos a conversar. Fiquei muito intrigado pela sua solidão e as faces presas às palmas de suas mãos.

Maria – Seja sincero! É porque sou linda, não é?!

Eu – Não raciocinei, apenas senti e agi. Sim, você é muito bela... mas, tem algo sensível demais nessa sua tristeza...Tem algo diferente, ou é coisa do nerd que sou?!

Maria – Primeiro, deixa claro pra mim o seguinte: quer transar comigo, não é?

Eu – Hã?!

Maria – Diz pra mim sinceramente que está de papo furado, estranho e florido para tentar me impressionar? Pintando de intelectual sensível, sobretudo aqui neste Brasil de pobres rudes! Ah! Exatamente como você falou, para compensar sua falta de armas físicas de sedução imediata.

Eu – Putz! Gosto demais do jeito que você fala! Verdade, temos alguns livros em comum, mesmo que apenas de divulgação científica. Eu gostaria de ter uma mulher como você entre os meus braços, não vou mentir! Entretanto, compreenda o que me fez parar e puxar conversa não possui esse objetivo. Ademais, posso ir embora se estiver te incomodando.

Maria – Fica, Waté “rrr” cio! Desculpa minha grosseria! Caso compartilhemos mesmo alguns livros, você entenderá minhas palavras e comportamento.

Eu – Olha o clichê que vou falar agora: compreendo, Maria, “humana demasiada humana”!!!

Maria – Kkkkkk!!! Isso mesmo, seu “besouro demasiado besouro”!!!

Eu – É um filme, um herói brasileiro esse besouro!

Maria – Não, você está mais para escaravelho mesmo!!! Quer dizer, no Brasil chamam de besouro-do-esterco, ou mesmo “rola-bosta”.

Eu – OH NÃO!!! Kkkkkkkkkkkkkkkkk!!!

Maria – Kkkkkkkkkkkkkk!!!

Eu – Por que você está aqui mergulhada em solidão?

Maria – Eu não sei! Sério! Simplesmente parei! O dia de hoje está tão lindo e tem tantas cores. Eu quis parar, fazer valer à pena estar viva. Sentir minha respiração, encontrar em meu corpo a história de todos meus ancestrais e agradecer a todo Acaso e Necessidade por estar... viva!!!

Antes mesmo do fim das palavras de Maria, eu já estava calado em perplexidade. Ela é uma alma sensível.

Eu – Faço isso, mas disfarço sempre! Sabe, nos chamariam de loucos!

Maria – Verdade!

Eu – Ao longe passam os outros, eles devem achar que estamos no mínimo conversando sobre o calor ou, o mais visceral, acertando nossa relação amorosa.

Maria – Tenho pena da maioria desses chimpanzés!

Eu – Sei do que você fala, mas não sinto o mesmo.

Maria – Por quê? Nossa espécie não tem lá sua beleza, assim como os besouros a sua?

Eu – Cada segundo da existência de um besouro é uma manifestação plena. É vida pela vida, sem qualquer parada para reflexão se vale à pena, ou não continuar. Besouros são vida bruta na essência mais sublime, por simplesmente viverem todos seus momentos completamente. Há pessoas que dizem para si mesmas que necessitam possuir coisas para se sentirem vivas. Você sabe, tem gente que está em prantos nesse exato momento, porque o sapato que usa não possui uma campanha publicitária importante, uma marca famosa. Pessoas matam outras, por causa de uma máquina como este celular! Não consigo ter um sentimento de pena de chimpanzés assim.

Maria – Você não deve ter lido muito, tem algo chamado de alienação... Coitados!

Eu – Já li a respeito, mas é parte do que sou. Besouros são muito mais belos do que muitos de minha espécie. Infelizmente!

Maria – Ok! Pelo menos você lamenta!

Eu – Lamento muito, porque nossa espécie possui potencialidade de ser a mão sensível da natureza. Aquela que preserva, aquela que salva, aquela que no momento mais escuro que um dia virá para este nosso planeta, levará suas sementes, toda a nossa história, para outro lugar possível. Isso é sonho de ficção científica, não é?!

Maria – Delírio de nerd é o mais adequado!

Eu – Pensei que você estava triste, ou pior, que estivesse com alguma dor, passando mal.

Maria – Esse é o encontro de duas almas sensíveis, Waté “rrr” cio!

Eu – Eu queria ser João para você falar meu nome direito!

Maria – Kkkkkkkkkkkk!!! O encontro de duas pessoas estranhas, uma delas com um nome mais estranho ainda!!!

Eu – Já tô me sentindo especial de novo, olha aí!!! [rsrsrsrs]

Maria – Tenho que voltar para vida comum, Waltécio. Prazer enorme em jogar conversa fora. Obrigada por perguntar como eu estava me sentindo.

Eu – Fui atrevido e segui meus instintos... E você não notou, mas falou direitinho o meu nome!!! [rsrsrsrs]

Maria – [rsrsrsr] Tá vendo, é aquela velha história de tentativa e erro. Bem, eu também faço isso, sou atrevida e sigo meus instintos. Sinto-me viva na grande maioria das vezes... entre tantos detalhes da vida... A vida de verdade, entendes?

Eu – Entendo, sim!!! Ah! Apaixonei-me por você! Espero voltar a lhe ver um dia.

Maria – Pequeno Kafka brasileiro!


Eu – Milena inesperada!

Maria – Kkkkkkkkkk!!! Agora fiquei vermelha!!!

Eu – Mais viva?!

Maria – Vermelho viva, então!!!

Eu – Até mais ver um dia, Maria-Milena!!! Se por toda a impossibilidade de nossas vidas breves nunca nos cruzarmos novamente, você sabe, quando morrermos nossos corpos serão decompostos e misturados. Devolveremos todos os componentes que pegamos emprestados. O carbono, a água, o hidrogênio e tantos e tantos outros que estão aqui na sua frente reunidos, com individualidade genética, social e histórica. Esse conjunto de coisas e seres que estão vivendo em nossos corpos... Um dia poderão compor seres diferentes! O carbono nas folhas das folhas de relva, a água na chuva torrencial do cerrado e o hidrogênio em asteróides percorrendo o universo. Cada pedaço disso está aqui te falando, mentindo para si mesmo que é Waltécio, que é Maria-Milena, que é besouro, que é lido, que é escrito. Viemos lá da poeira das estrelas... Nem lembramos disso e não seremos nós mesmos quando voltarmos a ser o que somos, sempre fomos...

Maria – ... matéria!

Eu – A matéria!

Nesse momento, como em qualquer conversa que temos, há uma pausa de segundos. Não notou, leitor(a) amigo(a), em cada diálogo, cada conversação, existe o que os pesquisadores da lingüística classificaram de “gap” da linguagem. No gap há um silêncio breve, onde os olhos encontram os outros olhos, uma linguagem corporal ancestral presente em nossa história, antes mesmo da origem da fala. Após isso, o gap é desfeito por Maria.

Maria – Então, tchau Waltécio! A gente se vê!

Eu – Siga em paz, Maria! Para terminar sem te surpreender e sendo o clichê que sou – nesse momento levanto a mão direita, faço com os dedos o sinal de Spock e falo em voz alta – “vida longa e próspera”!!!

Maria – Kkkkkkkk!!! Beijos!!!

Após isso seguimos em direções opostas, nunca mais nos encontramos outra vez. Todavia, sempre me lembrarei dessa doce alma sensível, em cada coleóptero vivo uma Milena inesperada!

7 comentários:

Ana EmíliaYamashita disse...

Muito bonito esse texto.
Depois de tanto tempo posso vir com uma boa notícia: TENHO PROFESSOR ORIENTADOR AGORA.
Muito obrigado por sua ajuda.
Beijos

Waltécio disse...

Todo o mérito é seu querida! Parabéns pela conquista e obrigado pelo elogio e por sempre estar por aqui conosco.

Beijos!

Anônimo disse...

Caro professor,
muito bacana o seu texto!
Aliás, em seu blog tem apenas diálogos e assuntos possíveis de discussão em meio acadêmico. Particularmente gostei muito.
Acabei me perdendo no tempo quando busquei por seus textos mais antigos e fui tentada a ler muitos deles.

Confesso que vim na internet às 4:00 da tarde buscar informações sobre comportamento animal e desde então não sai do "Macaco Alfa".

E mais fascinada fiquei ao ver que você é Dr. em Zoologia. Estou iniciando o meu projeto de mestrado também nessa área.

Bem, preciso ir agora iniciar minha pesquisa. hehe Mas garanto que virei mais vezes me deleitar com seus textos.

Encantada,
Maria Clara

Waltécio disse...

Olá Maria Clara,

Eu fico envaidecido com suas palavras e pelo tempo que você ficou aqui por essas linhas.

Também estou muito feliz que você esteja ingressando no mestrado, dando continuidade à sua formação. Acabei de escrever no epílogo dessa série (Diálogos) que profissionais qualificados como você são difíceis de se obter e deveriam ser o componente estratégico central para o desenvolvimento do Brasil.

Desejo sucesso em seu projeto,muitas publicações e, claro, quem sabe te encontre em um dos Congressos da vida... Certamente travaremos um ótimo Diálogo!

Até lá, espero sempre te "ler" por aqui!!!

Um grande abraço e uma ótima semana para você!!!

W.

Anônimo disse...

"Profissionais qualificados como você"

Que é isso, Doutor! Estou tentando me aproximar da vida acadêmica e apaixonei-me pelo blog exatamente pelo conteúdo. Aprendi aqui sobre o cotidiano acadêmico muito mais do que aprendi nos meus quatro anos e meio de graduação.

Deverias escrever um livro voltado para acadêmicos. A sua visão ajudaria a abrir olhos e mentes.

Gostaria de ter descoberto antes o Macaco Alfa e ter, como seus alunos e bolsistas, o privilégio de seus Diálogos, que "ao vivo" devem ser irresistíveis.

Certamente me terá por aqui! Se não comentando, lendo (devorando) tudo!
Grande abraço!

Maria Clara

Getulius disse...

Waltécio. Infelizmente não tenho dedicado muito tempo às leituras, incluindo o blog. Abandonei os meus há meses. Ficou muito bom o diálogo com essa milena. Foi uma leitura interessante.

Waltécio disse...

Esse diálogo foi feito inspirado nos velhos tempos de leitura e sonhos das histórias de Kafka.

Obrigado Getúlio, por ter me emprestado cada um desses livros [1989-1993]!!!

 
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