terça-feira, 2 de novembro de 2010

Não estamos sós: o chassi neural de todos os vertebrados

Há algumas semanas vi a chamada do Globo Repórter especial sobre inteligência entre os animais (em 15/10/2010). Não deu outra, dessa vez resolvi assistir, até porque muito do que seria apresentado fora produzido pela BBC. Entretanto, muitos canais de TV no Brasil enfrentam o mesmo desafio deste blog, transformar linguagem acadêmica, ou mesmo divulgação científica em certo nível para os brasileiros comuns. No caso do Globo Repórter, em minha opinião, foi um desastre.

Primeiro, os animais foram mostrados sem uma sequência evolutiva, daí ora estava uma ave, ora era um molusco, ora um mamífero. Isso resultou em um senso de fortuidade, que aquelas inteligências na verdade eram algo pitoresco, por vezes engraçado e nada havia em conexão umas com as outras, menos ainda com a nossa.

No post anterior foi difícil para mim percorrer milhões de anos de evolução. Descrever o surgimento de células especiais (neurônios) fundamentais para a formação do sistema nervoso. Isso não seria possível sem uma certa graduação que se iniciou com os primeiros seres vivos até as formas mais complexas.

O raciocínio é o mesmo e dando continuidade à evolução do ponto onde paramos, em um oceano repleto com metazoários, uns predando os outros (sem contar as demais formas de interação) e em meio a uma crescente espiral evolutiva rumo ao aumento de complexidade dessas relações, o sistema nervoso se tornou cada vez mais complexo... De ancestrais vermiformes deuterostomados nós vertebrados emergimos para a existência.

O nosso cérebro seguiu o desenvolvimento dos órgãos sensoriais concentrados na cabeça. Visão, audição, olfato, paladar, tato e eletromagnetismo, todos os seis sentidos estão presentes na cabeça dos primeiros peixes. Importante ainda ressaltar a nossa natureza de simetria bilateral. Desde as primeiras formas de vida predadoras como os vermes marinhos platelmintos e nemertinos que somos assim, um lado de nós é a imagem do outro lado refletida no espelho. Todo o nosso corpo é assim, lateralizado!

Em um mar repleto de predadores é importante demais olhar aos lados. Não apenas olhar (até porque a visão não é assim tão eficaz abaixo d’água) e sim ter todos os sentidos em constante alerta para possíveis ataques, ou mesmo para atacar uma presa.

O capricho do evento estocástico da lateralização de nossos corpos é que ela não é perfeita. Ao invés de cada lado processar diretamente os sinais do ambiente, eles são cruzados ao inverso. Todo o seu lado esquerdo é comandado pela parte direita do seu cérebro, o inverso para seu lado direito. Também não é exclusividade nossa, em todos os vertebrados há sempre um lado “preferido” para a ação. Adivinhem?! A maioria dos vertebrados é destra! Claro, e sempre existe também um canhoto entre nós!

Uma hipótese para esse circuito cruzado é fazer com que o organismo como um todo possa ter a possibilidade de interpretar e reagir a estímulos. Por exemplo, um ataque pela esquerda ao cruzar as conexões até a parte direita informa todo o corpo do animal e não apenas o lado atacado.

Não compliquemos mais essa história anatômica e fisiológica, vamos para o que interessa. A partir dos vertebrados o sistema nervoso se tornou muito mais complexo, sendo constituído por várias partes que se sobrepuseram e complementaram-se no decorrer da história evolutiva.

Por ordem de chegada e em termos didáticos temos (ver Sagan, C., 1997. Os dragões do Eden. Editora Gradiva):

(1) Medula espinhal, rombencéfalo [o bulbo, a ponte e o cerebelo] e mesencéfalo.


Essa é a parte mais arcaica do cérebro a qual contém o mecanismo neural básico para a sobrevivência (regulação cardíaca, circulação sanguínea e a respiração e reprodução). É quase a totalidade dos cérebros de peixes e anfíbios.

(2) Sistema límbico formado por amigdala, tálamo, hipotálamo, hipocampo e áreas específicas (giro cingulado, área tegumentar ventral, área pré-frontal).


O sistema límbico é o centro da formação das emoções, tomada de decisões para sobrevivência (ditas “não-racionais” tipo “lutar-ou-fugir” de um predador) e impulsos para o prazer (nossos vícios com drogas e sexo estão correlacionados ao sistema límbico). Aqui estamos todos nós, répteis (isso inclui as aves) e mamíferos.

(3) Neocórtex (lobos frontal, parietal, temporal e occipital), o qual envolve o restante do cérebro nos mamíferos.

O neocórtex é o que muitas pessoas conhecem como “cérebro”, embora seja apenas parte de um todo. É aqui que está o quê e o porquê de sermos como somos... Quanto maior o neocórtex, maior é a cognição. Nós humanos temos um dos maiores, mas, como bem está escrito na evolução o neocórtex não é uma exclusividade nossa.

Elefantes, golfinhos e, sobretudo, todos os macacos do mundo, nós compartilhamos a mesma plataforma de montagem. Como acontece com a indústria moderna de automóveis, de uma mesma plataforma se pode fazer diferentes carros. As variações nesse intrincado sistema refletem as diferenças entre as espécies de vertebrados.

Agora vamos dar reconhecimento ao primeiro trabalho científico que vislumbrou que nossas emoções humanas na verdade evoluíram a partir de ancestrais não humanos. Charles Darwin em seu clássico “A expressão das emoções no homem e nos animais” (1872; lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2000) foi o primeiro a demonstrar, com base em observações científicas (hoje chamamos essa área do conhecimento biológico de Etologia), que compartilhamos com outros vertebrados sofrimentos, lágrimas, ódio, raiva, alegria, bom humor, amor, devoção, surpresa, horror, vergonha e modéstia. Os dois extremos as lágrimas e o sorriso, já pensamos que eram exclusividades humanas. Hoje sabemos que elefantes choram e chimpanzés riem e muito!

Uma das melhores revisões atuais sobre emoções e cognição nos animais está no livro “Quando os elefantes choram – A vida emocional dos animais” (Masson, JM. e McCarthy, S., 2001. Editora Geração). Aqui você encontrará logo na leitura da contra-capa: um búfalo que patina no gelo para se divertir; um chimpanzé que chora pela morte de sua mãe e morre de tanta tristeza; um gorila tímido que brinca com bonecas quando ninguém olha para ele; corvos que usam pedaços do teto do Kremlin como tobogãs; e a voz de um papagaio africano que diz com estas palavras “Volta aqui! Eu te amo! Sinto muito! Quero voltar pra casa! (leia também: Pepperberg, IM., 2009. Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal, Editora Record).

Por que isso ainda nos surpreende? Por que uma rede de TV anuncia um especial sobre inteligência animal como se fosse algo exótico e até “engraçado”?

Como bem sabemos, nós possuímos em comum as mesmas “borboletas da alma” (neurônios) e, entre os vertebrados, compartilhamos o mesmo “chassi neural” (Medula espinhal, rombencéfalo, mesencéfalo, sistema límbico e neocórtex). O que nos faz amar e sermos inteligentes, também está presente na anatomia e fisiologia animal, antes mesmo de sermos o que somos.

Claro, essas palavras escritas aqui, em um ambiente digital de plástico e sílica e transmitidas por cabos de fibra óptica, deixa-nos a sensação de sermos muito diferentes. Além do mais, olhem para nosso prato de comida repleto de cadáveres de animais e plantas. Se reificamos (de reificar, transformar seres em “coisas”) tudo e usamos de nossa fantasia de não sermos deste mundo, os filhos dos deuses, fica fácil de escravizar, matar, cortar em pedaços e comer outros seres vivos.

Seu cão sente emoções verdadeiras por você, o seu gato realmente detesta ser incomodado quando dorme, o pequeno potro de sua fazenda brinca por pura diversão no pasto como se fosse uma criança humana, aquele pequeno asno urrou de dor ao ser espancado na rua, seus olhos encheram-se de lágrimas. Isso não é uma caricatura antropomórfica, cada um de seu jeito, cão, gato, cavalo, asno, humano, todos esses mamíferos possuem mais em comum do que grandes diferenças. Importante ressaltar ainda, diferenças essas só estabelecidas por milhões de anos de evolução que nos separam dos demais vertebrados, invertebrados, plantas e micróbios.

É estranho como somos tão preconceituosos com outras espécies ao ponto de negar a elas a existência de outras inteligências, nem mesmo sentimentos básicos. Não compreender como funciona a mente de um polvo é uma coisa, mas a nossa de vertebrado é outra. Aqui entre os nossos mais semelhantes, a conexão de mentes é máxima. O grito de dor de um porco nos trás terror, ou você ainda não sabe por que construímos os matadouros de animais bem longe do centro das cidades? Se você tiver curiosidade de saber coisas assim, recomendo a leitura do livro “O homem e o mundo natural” (Thomas, K., 1988. Editora Companhia das Letras) para terem idéia de porque comemos o que comemos, como matamos e a escolha de nossos animais de “estimação”.

Em termos de cognição o próximo post será apenas sobre humanos, como muito bem gostamos de fazer, uma atenção especial na origem da consciência, a mente, do que é formado nosso pensamento e os sonhos de ficção científica que agora começam a se realizar, podemos transmitir pensamentos fora do corpo e, quem sabe, em futuro próximo, armazenar registros eternos de pensamentos humanos em máquinas.

Esse será o dia da transcendência para algo diferente da natureza. Será o dia da Inteligência Artificial e das Histórias de Robôs editadas por Isaac Asimov se tornarem realidades. Até lá, continuamos o que somos, mamíferos emocionais, macacos neuróticos e meros trabalhadores explorados.

A importância dos seres humanos hoje reside na ligação deles com a biota. Então, olhe dos lados, leia um pouco e faça a conexão, perceba um mundo cheio de sentimentos. Você não está sozinho, há outras inteligências na natureza.

Referências

Darwin, CR., [1872] 2000. A expressão das emoções no homem e nos animais. Companhia das Letras.

Masson, JM. e McCarthy, S., 1998. Quando os elefantes choram: a vida emocional dos animais. Geração Editorial.

Pepperberg, IM., 2009. Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal. Editora Record.

Sagan, C., 1997. Os dragões do eden. Editora Gradiva.

Thomas, K., 1988. O homem e o mundo natural. Companhia das Letras.

Links
Inteligência dos Elefantes
Inteligência dos Animais

Inteligência Animal Superinteressante

Inteligência Animal Wikipédia
Inteligência nos Animais
Animais têm Emoções
Emoções nos Animais

5 comentários:

Unknown disse...

Muito legal waltécio. Aguardo a próxima postagem.

Te indiquei para responder umas perguntas que me passaram. Achei interessante por ser uma forma de conhecer melhor a pessoa por trás das postagens. Mas só responda se estiver afim. Segue o link com as perguntas e minhas respostas: http://animalinstintivo.blogspot.com/2010/11/corrente-de-blogs.html

Waltécio disse...

Olá Emerson,

É um prazer ter alguém aqui no Macaco Alfa que está cursando Biologia e possui grande interesse em Sistemática Filogenética (minha praia da graduação até o doutorado).

Acho que uma forma bacana de você dar uma olhada em um pouco de minha vida pessoal é no Face Book. Caso você tenha um perfil por lá, envia um convite para mim (não haverá muitos Waltécios por lá e meu e-mail lá é woalmeida@hotmail.com), ou manda seu e-mail do perfil que eu faço isso.

Obrigado pelos elogios e espero colocar no ar ainda este mês a próxima postagem. Se possível, dê uma olhada no Macaco Ômega:

http://macacomega.blogspot.com/

Até o final de dezembro devo reformular essa parte que andou tão esquecida.

Bem, mantenhamos contato e sucesso em sua vida acadêmica!!!

W.

Waltécio disse...

Ah! Adicionei um link de seu blog (Animal Instintivo) aqui no Macaco Alfa.

Achei muito maneiro a sua proposta e as postagens. Temos muito em comum, camarada!

Abs,

W.

Unknown disse...

Waltécio,

Maravilhosa postagem! Estava off do mundo blogger evolutivo, e a primeira postagem que leio, essa delícia!

Gostoso desocultar a realidade. E vou indicando você, gradualmente, quando posso e quando tenho oportunidade.

Força na construção,
All

Waltécio disse...

Eu também passei mais de um bom tempo sem aparecer por aqui, Allysson.

Das aulas, laboratório até simplesmente ler e escrever, tudo isso tem seu tempo. Ruim é quando tem uns imprevistos pelo caminho (saúde, ou até contas [=filas em banco], essas coisas).

Obrigado pelos elogios e divulgação do Macaco Alfa. Você é um amigo de longas datas e estava aqui logo no início do Blog.

Um grande abraço,

W.

 
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