segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sobre encontros, professores, vaidades e rivalidades


PreâmbuloAbro a porta da cozinha e saio correndo o máximo que posso. É início da tarde na casa de minha avó, eu tenho 11 anos de idade. Nesse horário é comum encontrar meus primos para brincar de SWAT, Liga da Justiça, sacis do Sítio do Pica Pau Amarelo e, para finalizar o dia, futebol.

De policial ao saci lambão passa-se à tarde. Em certo momento, acima de nossas cabeças, passa um avião. Volto meus olhos para os céus e penso: “lá estou eu no futuro, olhando para baixo e vendo eu no passado”.

Normalmente quando adultos subestimamos crianças, achamos que elas, ou nós mesmos, tivemos um longo tempo de dormência cerebral e que só começamos a ser quem somos a partir da adolescência. Bem, comum ou não, eu tinha lá minhas idéias quando criança e esse encontro comigo mesmo através do tempo era uma das minhas preferidas.

Foi isso que eu lembrei aos 32 anos quando estava em meu primeiro vôo. Em certo ponto da viagem olhei pela janela abaixo e confirmei o encontro: “lá estou eu no passado, olá menino Waltécio, você e suas certezas, hein?!”

E não parou por aí...

Agora tenho 22 anos e perambulo pelos corredores da Universidade Federal da Paraíba. Sempre olhava para as janelas das salas de aula e pensava: "lá estou eu como professor, em algum lugar olharei para fora da sala de aula e faremos nosso segundo encontro entre passado e futuro".

Entretanto, dessa vez eu compliquei o encontro, porque visualizei o professor que eu seria. Aos 37 anos de idade e com quase sete anos de exercício no magistério, olho pela janela da sala de aula e não me vejo nos corredores. Por que o segundo encontro comigo mesmo ainda não aconteceu?

A resposta eu expresso em uma parábola antropomórfica: em minha profissão primatas se transfiguram em pavões, mas sou símio demais para fingir ser uma ave vaidosa!

ProfessoresUma das profissões mais respeitadas no mundo inteiro é a de médico. Quando a máquina de nosso corpo falha, ou desenvolve algo ruim, ou é atacada por um agente infeccioso, precisamos de ótimos médicos para fazer nossas vidas voltarem ao que eram. Queremos viver nossas vidas ao máximo possível, até os 120 anos potenciais de um humano muito sortudo e saudável. A medicina está no centro dessa nossa necessidade.

Professores possuem funções um pouco diferentes. São essenciais, mas para fazer o inverso de um médico: mudar nossas vidas! Ao ir à escola e universidade não esperamos voltar os mesmos, tão pouco para a mesma vida de antes. Professores são profissionais que guiam pessoas na realização de sonhos.

Eu não poderei citar alguns nomes nos momentos difíceis deste texto, mas quem é próximo de mim saberá dos personagens reais implícitos. Um deles, um professor muito conhecido, certa vez falou: “eu não preciso de ninguém. Eu me construí sozinho.” Duvido muito dessas palavras e na época que ouvi foi de um de seus alunos, que guardavam certo desapontamento com isso e do professor em questão.

Na universidade tive exemplos positivos de professores muito especiais: a força e perseverança da profa Branca, a rebeldia de Paulo Rosa, a liderança de Adelmar Bandeira, o empenho de Ierecê, a calma de José Creão, o marxismo irreverente de Luiz(ito), o saber ouvir de Robson, o coração de estudante de Juracy e a torcida pelos alunos de Rosa Leonel. Isso guardei em minha agenda para misturar às características do professor que quero ser.

Todavia, só quem vive no meio acadêmico é quem sabe. Além da mediocridade, há alguns cujo ego não cabe no peito. Pior ainda, sentem-se o Charles Darwin vivo, perdidos em seus mundos particulares, insensíveis a qualquer problema social, incapazes de dizer um “bom dia”, absortos em suas consciências de pequeno burguês.

Sobre as vaidades acadêmicasQualquer profissão apresenta certo desgaste em seu exercício. Algumas são mais de desempenho físico, outras urgem mais de características psicológicas e subjetivas. Ambas são essenciais, possuem seus estresses e pontos limites que não devem ser ultrapassados.

No caso das universidades, primatas se transmutam em pavões, é o que vemos no dia a dia por todos os lados.
De certo, grandes nomes contemporâneos do conhecimento humano estão ligados às instituições de ensino superior. Cito como exemplo alguns de meus autores favoritos: Noam Chomsky, Richard Dawkins, Frans de Waal, Stephen Hawking, Robert Sapolsky, Jared Diamond e Edward Wilson. O reconhecimento de cada um desses nomes deu-se pelo que chamamos “mérito acadêmico".

Apesar de casos assim, na soma total, a maioria dos professores são educadores, ponto. Entre essa maioria estão os pesquisadores emergentes e muita gente que usa do status das estrelas para si próprio. É como um médico falar que é o “MD House” só porque exerce a mesma profissão do personagem fictício, mas passa ao largo da criatividade, produção científica e por vezes até a titulação.

A fórmula funciona assim: se tal profissão contém certa fatia de fama, então eu que a exerço sou famoso, ou mereço atenção especial.

O problema maior é que a verdade estabelece sua permanência no que chamamos realidade. Os alunos sabem discernir os melhores professores, assim como também os pavões dos primatas. Pelo menos deveriam!

Os professores adoecemDo outro lado dessa história estão os educadores, aqueles profissionais essenciais para sermos o que somos, mas que há décadas são desvalorizados profissional e socialmente.

Os professores são o fruto das universidades, são formados nelas para ocuparem todos os níveis da educação. A universidade também é o lar da produção do conhecimento, por isso, professores são apresentados ao sonho de participarem da construção de algo novo, eles são agentes críticos dos próprios livros que usam, conhecem, ou mesmo criaram aquilo que ensinam.

Sonhos de ser um professor/pesquisador podem ser rapidamente extirpados quando esses profissionais são mal remunerados, enfrentam condições precárias de trabalho, jornadas para além do recomendado e alunos nada “gentis, ou compreensíveis”. Todos sabemos que isso no nosso Brasil é uma regra, não exceção. Numa profissão que busca reconhecimento intelectual e desempenho curricular, professores adoecem com facilidade. Muitos entram em estresse e depressão aguda, desenvolvem síndrome de burnout.
Professores padecem de seus sonhos, pelos sonhos de outros, para os sonhos de todos.

As rivalidadesComprei o livro do jornalista britânico Michael White (2003 - Rivalidades produtivas, Editora Record) só de ler em sua orelha: “Na criação científica não há chance para ‘segundos inventores’, e Rivalidades produtivas mostra até que ponto gênios e prêmios Nobel são propensos a fofocas, intrigas, conflitos de personalidade, vilezas e ego trips. Tudo alimentado por variáveis que definem controle industrial, econômico, geopolítico, gerando decepções que resultam até em morte”.
No mesmo livro, cito um de seus melhores exemplos: a biofísica inglesa Rosalind Franklin e o seu papel na descoberta da estrutura do DNA.

Leia alguns trechos importantes:
A origem do desconforto de Rosalind, e, em última análise, o principal motivo pelo qual ela não conseguiu descobrir a estrutura do DNA antes de Crick e Watson, era seu terrível conflito com Maurice Wilkins. (...) O relacionamento entre Wilkins e Rosalind havia se deteriorado a tal ponto que ela nem mesmo mostrava seus resultados ao homem que oficialmente era seu chefe. (...) Para nossos heróis, a elucidação da estrutura do DNA foi uma experiência que modificou suas vidas. Em 1962, Crick, Watson e Wilkins dividiram o Prêmio Nobel por seus esforços para descrever a molécula do ácido desoxirribonucléico. Infelizmente, Rosalind Franklin morreu de câncer em 1958, com apenas 37 anos de idade. De acordo com as regras do comitê do Prêmio Nobel, o prêmio só pode ser dado a cientistas vivos e não pode ser dividido em mais de três partes. Muita gente ficou imaginando o que os juízes em Estocolmo teriam decidido se Rosalind estivesse viva. O debate, embora não tenha mais sentido, continua até hoje. (...) Quando perguntaram a Watson quem, na sua opinião, deveria ter recebido o prêmio se o câncer não tivesse roubado a vida de Rosalind, ele respondeu sem hesitar: Crick, eu e Rosalind Franklin” (White, 2003: 329-366).

Quem não viu fatos semelhantes assim acontecerem na universidade brasileira? Estou nesse mundo desde 1993, de aluno a professor vi muita coisa acontecer. Contaram-me histórias de rivalidades trágicas, uma das piores é de um provável assassinato culposo, onde um pesquisador (zoólogo) deu um soco em seu rival, o qual teve parada cardíaca e morreu.

Confesso cheio de vergonha que em muitas vezes perdi minha cabeça. Já gritei em reunião de departamento, já discuti aos pulmões e quase chego às vias de fato. Nessas ocasiões fui mais um imbecil acadêmico, cheio das certezas e todo equivocado. Em todos os casos passados, sempre me desculpei e fui desculpado... Hoje evito uma discussão desnecessária como o diabo à cruz.

De outro lado, na forma de professor o que não me falta são lembranças de desrespeitos de companheiros de trabalho, pedidos para “jeitinhos”, inúmeros favores políticos e, claro, as minhas próprias rivalidades acadêmicas. Basta apenas publicar um único artigo em uma boa revista para se conquistar um inimigo. Por isso, sempre penso comigo repetidas vezes: quanto maior for seu brilho, maior escuridão se avizinhará.



Epílogo: encontro marcado
Olho para a janela agora e reconheço para mim mesmo que ainda não chegou a hora de meu encontro, o aluno que fui está lá, mas o professor que imaginei eu ainda não me tornei. Decididamente tenho que desenvolver um ponto de equilíbrio, não esquecer quem sou, minhas origens... Eu não posso me alienar e abandonar os milhões de pessoas que estão lá fora apostando, melhor ainda, financiando minha profissão.

Até agora, apenas quatro de meus orientados chegaram a mestrado, dois deles estão no doutorado. Nesse ponto eu sei que me realizei enquanto professor, mudei para melhor a vida dessas pessoas. Quero mais ainda, porque resultados assim é o remédio que preciso para conviver no dia a dia com pavões e aspirações de pequeno burguês.

Há mais o que fazer e um encontro comigo mesmo para realizar!

Saudações educacionais para todos!!!

6 comentários:

Unknown disse...

Eu gostei do texto. É ao mesmo tempo uma auto-análise e uma reflexão que envolve a todos. Só vou deixar uma observação contrária: esse lance de ouvir sempre as mulheres parece que está fazendo uma média... hahahahaha
Tem mulheres que são terríveis nesse mundo acadêmico, mais cruéis do que os homens! Tu estás é fazendo média com a mulherada! rsrsrsrs

Valeu.

Waltécio disse...

É só um tipo de "relato de caso". Os exemplos são verdadeiros, se tivesse ouvido Juracy e Leila sobre pessoas que eu não conhecia cometeria menos erros.

Verdade, salvem-se os homens da fúria de uma única mulher. Por isso, admiro-as demais!!!

Isso sim é média!!! rsrsrsrs!!!

Valeu pelo comentário, camarada!!!

Saudações revolucionárias!!!

Vinícius Ferreira disse...

Oi Waltécio,

Muito bom seu comentário. Essa discussão é muito boa para que todos lembrem que cientistas e professores são seres humanos, como quaisquer outros. Portanto, são susceptíveis às virtudes e erros. Isso precisa sempre ser levado em consideração na produção da ciência, e especialmente na relação com nossos alunos. Muitas vezes um professor-pavão pode causar estragos notáveis nos futuros profissionais.

Convido a visitar o meu blog no http://psicologiaciencia.blogspot.com

Abraço.

Waltécio disse...

Olá Vinicius,

Visitei o seu blog, parabenizo pelos excelentes textos e idéia geral, já estou lá como seguidor e leitor.

Há ainda um lado que talvez aborde em outro post que dedicarei apenas a questão dos alunos. Verdade, um professor que se acha o Drawin-Vivo pode promover estragos em tudo ao seu redor. Acho que você deve conhecer seus exemplos particulares, como eu tenho os meus.

Entretanto, a vida acadêmica que estou inserida é muito sedutora. Olha, que eu tra balho em uma universidade pequena, jovem, emergente com pouca infra-estrutura e ainda cheia de vícios políticos-administrativos.

Se eu estivesse como professor de uma grande universidade?! Eu tenho currículo hoje compatível com alguém de minha idade profissional, se tivesse o mesmo currículo em outra universidade com prestígio aposto com você que eu teria uma quantidade de fãs e inimigos maior do que possuo hoje.

Em qualquer nível da educação, professores são ídolos de seus alunos. É inevitável a admiração, sobretudo dos melhores.

Aí é que entra a parte difícil, porque nenhum curso que eu conheço nos prepara, muito menos ainda faz uma seleção para profissionais com treinamento em lidar com pessoas.

Eu sou zoólogo, bacharel, a didática que cursei foi no mestrado somado aos estágios docência da CAPES. Nada disso me preparou para lidar com cantadas de alunas, ciúmes em laboratório, inveja e discussões pra lá de inusitadas.

Um equilíbrio é o que eu procuro hoje em dia.

Bem, mas na soma geral, amo demais minha profissão, muito mais ainda a oportunidade de realizar pesquisa e publicar bons trabalhos científicos. Para isso o treinamento que tive foi ótimo e agradeço demais a todos os professores que contribuiram para a formação de quem eu sou hoje.

Um grande abraço e continuemos em contato!

Waltécio

Waltécio disse...

Ah! Sobre as cantadas, o problema de verdade é quando não correspondemos à altura. Aí a aluna, ou professora não correspondida sai pelos corredores inventando um monte de mentiras. Quem leu um pouco sobre comportamento humano sabe muito bem como mulheres atacam homens nesses momentos.

Mas isso é exceção, principalmente comigo, porque sou casado, baixinho e feio!!! rsrsrsrs!!! As lutas de ego na ciência me afetam mais, assim como a falta de manutenção dos equipamentos e estruturas físicas na URCA.

A vida é tranqüila e tenho incentivo aqui da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científiico e Tecnológico - FUNCAP para dedicar-me à pesquisa. Isso é muito bom!!!

Ana EmíliaYamashita disse...

Devo concordar que está cheio de profissionias pavão nãs instituições de ensino e essa sobrer e arrogâncio são tanto quanto a importância e relevância das instituições as quais pertencem. Infelizmente!
Mas ainda existem os "mestres" aquelas pessoas que nos dão orgulho pelo que se tornaram através de sua profissão.
Mais uma vez obrigada pela atenção.
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