segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sobre encontros, professores, vaidades e rivalidades


PreâmbuloAbro a porta da cozinha e saio correndo o máximo que posso. É início da tarde na casa de minha avó, eu tenho 11 anos de idade. Nesse horário é comum encontrar meus primos para brincar de SWAT, Liga da Justiça, sacis do Sítio do Pica Pau Amarelo e, para finalizar o dia, futebol.

De policial ao saci lambão passa-se à tarde. Em certo momento, acima de nossas cabeças, passa um avião. Volto meus olhos para os céus e penso: “lá estou eu no futuro, olhando para baixo e vendo eu no passado”.

Normalmente quando adultos subestimamos crianças, achamos que elas, ou nós mesmos, tivemos um longo tempo de dormência cerebral e que só começamos a ser quem somos a partir da adolescência. Bem, comum ou não, eu tinha lá minhas idéias quando criança e esse encontro comigo mesmo através do tempo era uma das minhas preferidas.

Foi isso que eu lembrei aos 32 anos quando estava em meu primeiro vôo. Em certo ponto da viagem olhei pela janela abaixo e confirmei o encontro: “lá estou eu no passado, olá menino Waltécio, você e suas certezas, hein?!”

E não parou por aí...

Agora tenho 22 anos e perambulo pelos corredores da Universidade Federal da Paraíba. Sempre olhava para as janelas das salas de aula e pensava: "lá estou eu como professor, em algum lugar olharei para fora da sala de aula e faremos nosso segundo encontro entre passado e futuro".

Entretanto, dessa vez eu compliquei o encontro, porque visualizei o professor que eu seria. Aos 37 anos de idade e com quase sete anos de exercício no magistério, olho pela janela da sala de aula e não me vejo nos corredores. Por que o segundo encontro comigo mesmo ainda não aconteceu?

A resposta eu expresso em uma parábola antropomórfica: em minha profissão primatas se transfiguram em pavões, mas sou símio demais para fingir ser uma ave vaidosa!

ProfessoresUma das profissões mais respeitadas no mundo inteiro é a de médico. Quando a máquina de nosso corpo falha, ou desenvolve algo ruim, ou é atacada por um agente infeccioso, precisamos de ótimos médicos para fazer nossas vidas voltarem ao que eram. Queremos viver nossas vidas ao máximo possível, até os 120 anos potenciais de um humano muito sortudo e saudável. A medicina está no centro dessa nossa necessidade.

Professores possuem funções um pouco diferentes. São essenciais, mas para fazer o inverso de um médico: mudar nossas vidas! Ao ir à escola e universidade não esperamos voltar os mesmos, tão pouco para a mesma vida de antes. Professores são profissionais que guiam pessoas na realização de sonhos.

Eu não poderei citar alguns nomes nos momentos difíceis deste texto, mas quem é próximo de mim saberá dos personagens reais implícitos. Um deles, um professor muito conhecido, certa vez falou: “eu não preciso de ninguém. Eu me construí sozinho.” Duvido muito dessas palavras e na época que ouvi foi de um de seus alunos, que guardavam certo desapontamento com isso e do professor em questão.

Na universidade tive exemplos positivos de professores muito especiais: a força e perseverança da profa Branca, a rebeldia de Paulo Rosa, a liderança de Adelmar Bandeira, o empenho de Ierecê, a calma de José Creão, o marxismo irreverente de Luiz(ito), o saber ouvir de Robson, o coração de estudante de Juracy e a torcida pelos alunos de Rosa Leonel. Isso guardei em minha agenda para misturar às características do professor que quero ser.

Todavia, só quem vive no meio acadêmico é quem sabe. Além da mediocridade, há alguns cujo ego não cabe no peito. Pior ainda, sentem-se o Charles Darwin vivo, perdidos em seus mundos particulares, insensíveis a qualquer problema social, incapazes de dizer um “bom dia”, absortos em suas consciências de pequeno burguês.

Sobre as vaidades acadêmicasQualquer profissão apresenta certo desgaste em seu exercício. Algumas são mais de desempenho físico, outras urgem mais de características psicológicas e subjetivas. Ambas são essenciais, possuem seus estresses e pontos limites que não devem ser ultrapassados.

No caso das universidades, primatas se transmutam em pavões, é o que vemos no dia a dia por todos os lados.
De certo, grandes nomes contemporâneos do conhecimento humano estão ligados às instituições de ensino superior. Cito como exemplo alguns de meus autores favoritos: Noam Chomsky, Richard Dawkins, Frans de Waal, Stephen Hawking, Robert Sapolsky, Jared Diamond e Edward Wilson. O reconhecimento de cada um desses nomes deu-se pelo que chamamos “mérito acadêmico".

Apesar de casos assim, na soma total, a maioria dos professores são educadores, ponto. Entre essa maioria estão os pesquisadores emergentes e muita gente que usa do status das estrelas para si próprio. É como um médico falar que é o “MD House” só porque exerce a mesma profissão do personagem fictício, mas passa ao largo da criatividade, produção científica e por vezes até a titulação.

A fórmula funciona assim: se tal profissão contém certa fatia de fama, então eu que a exerço sou famoso, ou mereço atenção especial.

O problema maior é que a verdade estabelece sua permanência no que chamamos realidade. Os alunos sabem discernir os melhores professores, assim como também os pavões dos primatas. Pelo menos deveriam!

Os professores adoecemDo outro lado dessa história estão os educadores, aqueles profissionais essenciais para sermos o que somos, mas que há décadas são desvalorizados profissional e socialmente.

Os professores são o fruto das universidades, são formados nelas para ocuparem todos os níveis da educação. A universidade também é o lar da produção do conhecimento, por isso, professores são apresentados ao sonho de participarem da construção de algo novo, eles são agentes críticos dos próprios livros que usam, conhecem, ou mesmo criaram aquilo que ensinam.

Sonhos de ser um professor/pesquisador podem ser rapidamente extirpados quando esses profissionais são mal remunerados, enfrentam condições precárias de trabalho, jornadas para além do recomendado e alunos nada “gentis, ou compreensíveis”. Todos sabemos que isso no nosso Brasil é uma regra, não exceção. Numa profissão que busca reconhecimento intelectual e desempenho curricular, professores adoecem com facilidade. Muitos entram em estresse e depressão aguda, desenvolvem síndrome de burnout.
Professores padecem de seus sonhos, pelos sonhos de outros, para os sonhos de todos.

As rivalidadesComprei o livro do jornalista britânico Michael White (2003 - Rivalidades produtivas, Editora Record) só de ler em sua orelha: “Na criação científica não há chance para ‘segundos inventores’, e Rivalidades produtivas mostra até que ponto gênios e prêmios Nobel são propensos a fofocas, intrigas, conflitos de personalidade, vilezas e ego trips. Tudo alimentado por variáveis que definem controle industrial, econômico, geopolítico, gerando decepções que resultam até em morte”.
No mesmo livro, cito um de seus melhores exemplos: a biofísica inglesa Rosalind Franklin e o seu papel na descoberta da estrutura do DNA.

Leia alguns trechos importantes:
A origem do desconforto de Rosalind, e, em última análise, o principal motivo pelo qual ela não conseguiu descobrir a estrutura do DNA antes de Crick e Watson, era seu terrível conflito com Maurice Wilkins. (...) O relacionamento entre Wilkins e Rosalind havia se deteriorado a tal ponto que ela nem mesmo mostrava seus resultados ao homem que oficialmente era seu chefe. (...) Para nossos heróis, a elucidação da estrutura do DNA foi uma experiência que modificou suas vidas. Em 1962, Crick, Watson e Wilkins dividiram o Prêmio Nobel por seus esforços para descrever a molécula do ácido desoxirribonucléico. Infelizmente, Rosalind Franklin morreu de câncer em 1958, com apenas 37 anos de idade. De acordo com as regras do comitê do Prêmio Nobel, o prêmio só pode ser dado a cientistas vivos e não pode ser dividido em mais de três partes. Muita gente ficou imaginando o que os juízes em Estocolmo teriam decidido se Rosalind estivesse viva. O debate, embora não tenha mais sentido, continua até hoje. (...) Quando perguntaram a Watson quem, na sua opinião, deveria ter recebido o prêmio se o câncer não tivesse roubado a vida de Rosalind, ele respondeu sem hesitar: Crick, eu e Rosalind Franklin” (White, 2003: 329-366).

Quem não viu fatos semelhantes assim acontecerem na universidade brasileira? Estou nesse mundo desde 1993, de aluno a professor vi muita coisa acontecer. Contaram-me histórias de rivalidades trágicas, uma das piores é de um provável assassinato culposo, onde um pesquisador (zoólogo) deu um soco em seu rival, o qual teve parada cardíaca e morreu.

Confesso cheio de vergonha que em muitas vezes perdi minha cabeça. Já gritei em reunião de departamento, já discuti aos pulmões e quase chego às vias de fato. Nessas ocasiões fui mais um imbecil acadêmico, cheio das certezas e todo equivocado. Em todos os casos passados, sempre me desculpei e fui desculpado... Hoje evito uma discussão desnecessária como o diabo à cruz.

De outro lado, na forma de professor o que não me falta são lembranças de desrespeitos de companheiros de trabalho, pedidos para “jeitinhos”, inúmeros favores políticos e, claro, as minhas próprias rivalidades acadêmicas. Basta apenas publicar um único artigo em uma boa revista para se conquistar um inimigo. Por isso, sempre penso comigo repetidas vezes: quanto maior for seu brilho, maior escuridão se avizinhará.



Epílogo: encontro marcado
Olho para a janela agora e reconheço para mim mesmo que ainda não chegou a hora de meu encontro, o aluno que fui está lá, mas o professor que imaginei eu ainda não me tornei. Decididamente tenho que desenvolver um ponto de equilíbrio, não esquecer quem sou, minhas origens... Eu não posso me alienar e abandonar os milhões de pessoas que estão lá fora apostando, melhor ainda, financiando minha profissão.

Até agora, apenas quatro de meus orientados chegaram a mestrado, dois deles estão no doutorado. Nesse ponto eu sei que me realizei enquanto professor, mudei para melhor a vida dessas pessoas. Quero mais ainda, porque resultados assim é o remédio que preciso para conviver no dia a dia com pavões e aspirações de pequeno burguês.

Há mais o que fazer e um encontro comigo mesmo para realizar!

Saudações educacionais para todos!!!

domingo, 27 de setembro de 2009

Ano Darwin

Quase no fim do ano, eis aqui outro texto comemorativo ao aniversário de 200 anos do nascimento de Charles Robert Darwin (1809-1882) e 150 anos da publicação de sua obra-prima “On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or The Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (1859)”.

Decidi que este post não deveria abordar pontos técnicos da Teoria da Evolução por Seleção Natural que estão muito bem descritos na literatura, divulgação científica e em milhares de textos disponíveis aqui na internet. Ao invés disso, acho nesse momento que o lado humano de Charles Darwin e seu contexto social são interessantes e adequados para as datas comemoradas. Afinal, trata-se de comemoração do aniversário de uma pessoa, cujo livro famoso é um produto seu.

Minha síntese é vulgar, mas humana e despretensiosa, baseada nos livros que li (veja lista abaixo).

De forma estranha, contudo necessária, este é um post em saudação a Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829).


Curioso? Façamos as perguntas certas:

Por que Lamarck não é reconhecido como “pai” do evolucionismo moderno?

Qual a diferença verdadeiramente científica e social entre Lamarck e Darwin?

Como Mendel figura nessa história da Sociologia da Ciência?

Vamos lá!

Por que Lamarck não é reconhecido como “pai” do evolucionismo moderno?

Lamarck foi um homem com visões muito à frente de seu tempo. Se você não sabe, fica aqui mais um relato em reconhecimento ao primeiro evolucionista moderno da história de nossa ciência ocidental. Em Philosophie Zoologique (1809) ele foi o “pai” da idéia central, pô! O que é evolução? Resposta: modificações por descendência dos sistemas biológicos através do tempo. Houve Zoönomia (1794–1796) de Erasmus Darwin (1731-1802), um poema épico no qual a vida se transmutava, mas sua linguagem é mais literária do que científica. Por isso, discordo do biógrafo britânico Paul Strathern (2001: 15), não é chauvinismo reconhecer Lamarck como o fundador do evolucionismo moderno, é um fato histórico!!!

Até esse ponto haviam se passado mais de mil anos de ensino das ciências naturais ancoradas em idéias filosóficas de Platão e Aristóteles para um mundo constituído de componentes eternos, fixos no tempo e no espaço. Lamarck foi o primeiro a propor com parâmetros científicos uma ruptura dessa crença. Ele foi um homem de coragem e ousadia. Essa ruptura proposta não se restringia às ciências biológicas, ia de encontro aos dogmas religiosos e mesmo a concepção da organização política e social do século XVIII.

Como ele se atreveu a isso? A ciência como conhecemos hoje estava se formando, pessoas como Lamarck são exemplos disso. Sem contar que foi na França a primeira vez que se contratou profissionais com remuneração para estudar a natureza. Nascia em meio em meio ao Iluminismo e Revolução Francesa minha profissão de professor/ pesquisador... Antes, pesquisar era uma atividade tal qual um hobby elegante da aristocracia.

Lamarck acertou o centro do que eu identifico como axioma da Biologia Evolutiva: a inconstância temporal e espacial dos sistemas biológicos!!!

Entretanto, três coisas pesaram contra suas idéias. Primeiro, Lamarck teve como inimigo uma celebridade científica de sua época: o Barão Georges Cuvier (1769-1832). Este deflagrou ataque aberto para que ninguém citasse em publicações as idéias de Lamarck. Na ciência que conhecemos hoje, a tentativa de ignorar alguém dessa forma é algo semelhante a um assassinato profissional.

Segundo, os conservadores ingleses não aceitariam qualquer proposta que fosse passível de ser incorporada em manifestos de esquerda. Evolucionismo estava nessa lista. Afinal, os reis e nobres, políticos, empresários e clérigos justificavam suas posições sociais como uma “vontade natural divina”. O mundo era fixo, criado por deus, a organização social também!

Em terceiro e por último, Lamarck era pobre, sem influência do “capital”. Não é tão diferente hoje, ou você acha que onde se possui dificuldades financeiras pode surgir facilmente um grande cientista? Não deixe de reler o post sobre isso aqui no Macaco Alfa: “[clique]
Sociologia da Ciência”.

Quem leu um pouco sabe que Lamarck foi uma figura tão forte que mesmo os seus críticos mais ferrenhos leram sua obra. Por isso falar em evolucionismo é falar sobre ele. Por exemplo, Darwin foi lamarckista quando tentou explicar como os “caracteres vantajosos” dos “mais aptos” eram transmitidos para os descendentes. Darwin concordou com Lamarck sobre os caracteres adquiridos ao propor a pangênese. Se os caracteres adquiridos foi um erro de Lamarck, façamos um peso duplo para Darwin que também aprovou essa idéia.

Mesmo assim, Lamarck é ridicularizado nos livros de ensino médio por isso. As girafas ilustrativas é uma vergonha para os autores que continuaram, sem análise crítica, a reproduzir os preconceitos sociais e científicos para rebaixar Lamarck e exultar Darwin. O exemplo maior disso é que os erros de Darwin não figuram nos mesmos livros que demonstram “os pescoços adquiridos das girafas”. No ensino médio, que forma a mentalidade dos cidadãos comuns deste Brasil, é vendida a imagem de um Darwin imperioso e solitário fundador da evolução, certo de tudo, cientista perfeito, cujas idéias foram amplamente aceitas. ¬¬

Sobre essas coisas típicas da Sociologia da Ciência, sempre falo nos seguintes exemplos ilustrativos em sala de aula:

1) Como são as relações entre Brasil e Argentina para um brasileiro comum? Por exemplo, quem é o melhor jogador de futebol do mundo, Pelé, ou Maradona?
2) Quem é o pai da aviação segundo um norte-americano comum?

Respondeu as questões?

Para os brasileiros Pelé é o “rei do futebol”, mesmo que a Fifa reconhecesse o contrário elegendo Maradona o melhor jogador do mundo. Mas, para os argentinos essa resposta está errada. As relações entre Brasil e Argentina são sempre apresentadas assim pelas ruas dos dois países.

Nos Estados Unidos qualquer pessoa comum dirá para você que não é um único homem a inventar a aviação, são dois norte-americanos: “os irmãos Wright”. Decepcionado?! Acha que a resposta seria diferente se perguntássemos quem foi o inventor do avião e não da aviação? Estou escrevendo sobre o americano comum, aquele apenas com o equivalente ao nosso ensino médio... a “maioria”, o povo, “só isso”!!! Eles continuarão a dizer para você: “os irmãos Wright”.

Inglaterra e França historicamente construíram relações semelhantes como as do Brasil/ Argentina. Dificilmente um herói francês será aclamado por ingleses e vice-versa.

Deixo claro, Lamarck foi reconhecido o “the Linné of France” muito depois de sua morte... e que morte! Pobreza quase absoluta, sua família precisou de ajuda financeira para sobreviver e ele foi enterrado no que chamamos de “cova coletiva, ou vala” com pás de cal por cima, em meio as centenas de pessoas sem nome... seus restos mortais estão hoje perdidos para sempre!

Parece que respondi parte da segunda pergunta deste post, mas há um pouco mais a escrever sobre isso.

Qual a diferença verdadeiramente científica e social entre Lamarck e Darwin?

Lamarck errou em parte sobre o mecanismo pelo qual ocorria a evolução das espécies. Há mais ainda, ele errou em atrelar o processo de evolução ao progresso contínuo rumo a uma perfeição idealizada pelos antigos filósofos naturalistas da Grécia (a “cadeia do ser” que culminava em nós humanos). A evolução das espécies de Lamarck incorporou esse senso comum. Darwin propôs um mecanismo adequado e consistente aos fatos observáveis: a seleção natural. Uma das diferenças entre ele e Lamarck tão divulgada para o público. Mas, há mais similaridade do que grandes diferenças aqui. Darwin além de incorporar a idéia de transmissão de caracteres adquiridos pela pangênese, também se rendeu ao senso comum do progresso na evolução, os seres mais aptos foram interpretados como “melhores e superiores” do que outros. O estudo da correspondência de Darwin demonstrou que após a publicação da Origem das Espécies, ele se tornou cético em relação a essa idéia de progresso.

Isso são apenas alguns exemplos de diferenças e similaridades entre Lamarck e Darwin. Naquilo que verdadeiramente eram díspares está na origem social de ambos. Lamarck vem daquilo que nós brasileiros chamamos de classe média baixa. Lamarck tinha de trabalhar para sobreviver. Chegou a ser herói de guerra, condecorado e ferido em campo de batalha. Lamarck foi o cara!!!

Darwin nasceu em berço esplêndido, teve receio (ou mesmo medo) de publicar suas idéias. Foi reconhecido e laureado por grandes vultos de sua época, embora tivesse em segredo idéias bastante diferente dessas pessoas. Darwin parecia usar da política social esguia similar a do geólogo inglês Sir Charles Lyell (1797-1875), que particularmente concordava com suas idéias, incentivava-o como amigo a publicá-las, mas, publicamente, para não abalar sua posição social, nunca o defendeu em nenhum momento. Muito pelo contrário, parecia Pedro negando três vezes aquilo que deveria ter orgulho. O status social da família Darwin poderia ser abalado com essas idéias de “evolucionismo francês”, isso foi uma das maiores tormentas psicológicas para esse homem que evitava conflitos.

O escárnio de Lamarck nas universidades inglesas refletia o medo e aversão das idéias revolucionárias da França. Lá cortaram as cabeças do rei Luís XVI (1754-1793) e sua rainha Maria Antonieta (1755-1793), difundiram o conhecimento literário e científico para as massas, inspiraram o mundo inteiro com os ideais mais nobres de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”... Os Estados Unidos entraram em guerra contra a Inglaterra por sua independência (1775–1783). Após isso, conseguiram em 28 de outubro de 1886 um presente “modesto” da França, nada mais, nada menos do que um de seus símbolos máximos: a Estátua da Liberdade (La liberté éclairant le monde).

A Inglaterra monarquista perdeu à força suas colônias nas Américas e a França revolucionária se orgulhava de ter apoiado tudo!!!

Vocês entendem agora o porquê da origem do evolucionismo moderno está difundido e atrelado a um herói inglês e não um francês pobre?

Claro, nem tudo é assim tão na cara. Charles Darwin queria um mundo impossível de existir na Inglaterra vitoriana: uma carreira de status entre os fidalgos conservadores e a aceitação de uma teoria revolucionária contrária as crenças dessas mesmas pessoas. Ele teve ao seu lado importantes defensores como o anatomista e fisiologista inglês Thomas Henry Huxley (1825-1895), o botânico norte-americano Asa Grey (1810-1888) e o britânico e também botânico Joseph Dalton Hooker (1817-1911). Apesar disso, não escondeu sua tristeza por ver o desaprovo de seus professores mais queridos: John Stevens Henslow (1795-1861) e Sir Charles Lyell.

Charles Darwin viveu dos proventos de seu pai rico, assim como ele, investiu em terras e na bolsa de valores, tornou-se rico. Sem contar a fortuna da família de sua esposa Emma Wedgwood (1808-1896). Nunca dependeu de salário algum, foi laureado em vida com medalha da Royal Society (1853) e tudo mais, saiu da Inglaterra apenas por cinco anos, custeado pelo pai no Beagle. Após isso, só voltou a sair de casa para cuidar da saúde, viveu em sua “modesta” mansão de campo até o fim de seus dias.

Qual era a expectativa de vida média de um cidadão comum no século XIX na Inglaterra? Li aqui na internet que era de 40 anos. Nesse mundo social de exploração do proletariado na aurora da revolução industrial, Darwin viveu até os 73 anos!!! Continuemos esse exemplo, a expectativa de vida média de um homem na Inglaterra em 2000 era 74,5 anos. Aqui na região nordeste de hoje, segundo dados do IBGE, a expectativa de vida de um homem médio é de 66,2 anos. Ou seja, mesmo doente pelo mal de Chagas associado a distúrbios psicológicos, Darwin viveu muito e muito bem.

Ok, Lamarck morreu aos 85 anos, viveu mais de dez anos do que Darwin. Nessa história comparativa, pelo menos um pouco de mais vida Lamarck conseguiu!!! \o/

Como Mendel figura nessa história de Sociologia da Ciência?



A ciência é um empreendimento humano e como tal reflete todas as qualidades e defeitos que possuímos. Nós sabemos que Gregor Johann Mendel (1822-1884) só foi reconhecido postumamente. Estranho é que esse monge austríaco, que comia suas ervilhas no almoço e jantar, é apresentado nos livros de ensino médio como um “contribuidor” da ciência e “complementar” as idéias de Darwin.

Se a ciência se faz assim em contribuições que se somam, então teríamos a Teoria da Evolução proposta por Lamarck, o mecanismo da evolução (seleção natural) por Darwin-Wallace e o processo de transmissão dos caracteres segundo as leis de Mendel. Sem exaltar qualquer um deles como um super-homem, pior ainda, exemplo de humano a ser imitado, seguido como um guru espiritual.

Mas a história da ciência não é contada assim para os cidadãos comuns que compõe as massas distribuídas e estratificadas política, social e economicamente.

Por que escrevo assim? Parece algo vindo de uma pessoa cheia de rancor. Garanto que estou tentando ser o mais frio e imparcial possível para meus próprios limites de personalidade.

Vamos ver a vida de Charles Darwin como ela está na literatura. Um típico aristocrata inglês da era vitoriana, casado com a prima rica promovendo as dinastias endogâmicas conhecidas por nós, onde a sua esposa era educada para servir ao marido e comprovar sua virilidade com muitos filhos. Vamos relembrar o cotidiano de Darwin (retirado de Stefoff, 2007: 59-60):

1) Após acordar, uma caminhada em sandwalk(*).
2) Desejum.
3) Trabalhos científicos e ler as correspondências em seu gabinete das 8h às 9h30.
4) Voltar aos trabalhos científicos a partir das 10h30 às 11h30.
5) Nova caminhada em sandwalk, ou uma ducha fria.
6) Almoço ao meio dia.
7) Ao início da tarde ler jornal e escrever cartas.
8) Às 15h repouso no quarto, sua esposa lia em voz alta romances para ele nesses momentos.
9) À tardinha voltava a andar em sandwalk e realizava mais uma hora de trabalho científico.
10) Uma leve refeição à noite.
11) Após o jantar, jogava gamão com sua esposa (anotava todas as partidas).
12) Antes de ir para cama lia um livro e deitava-se às 22h30.

“Ele [Darwin] ainda era uma criatura de hábitos. A vida estava agora totalmente ‘mecanizada’, uma rotina de relógio, composta pelo café da manhã-trabalho-correspondência-trabalho-caminhada-almoço-cartas-cochilo-trabalho-correspondência-chá-livros-cama. Emma também gostava da solidão e preenchia sua vida pouco interessante com o ‘pobre marido doente e choramingoso’ com grande paciência” (Desmond e Moore, 2001: 357).

Peço a licença para a comparação que farei agora. Não quero diminuir as importantíssimas contribuições científicas realizadas por Charles Darwin. Se nos dermos a liberdade de vê-lo como um homem comum e o trouxéssemos desse jeito para a realidade da Inglaterra no final do século XX, dificilmente gostaríamos do que ele seria como pessoa. Você acha um exagero meu? Lembrem e cantem comigo a música da famosa banda de rock inglesa Radiohead:

Fitter Happier (1997)

Fitter, happier, more productive, comfortable, not drinking too much
Adaptado, muito feliz, mais produtivo, confortável, não beber muito
Regular exercise at the gym, 3 days a week
Exercícios regulares na academia, três dias na semana
Getting on better with your associate employee contemporaries at ease
Relacionando-se melhor com seus sócios e amigos do trabalho
Eating well, no more microwave dinners and saturated fats
Comer bem, nada de comida de microondas e gosduras saturadas
A patient better driver, a safer car, baby smiling in back seat
Um motorista paciente e melhor, um carro seguro, filho sorrindo no banco de trás
Sleeping well, no bad dreams, no paranoia
Dormir bem, sem sonhos ruins, sem paranóia
Careful to all animals, never washing spiders down the plughole
Cuidadoso com todos animais, nunca colocar aranhas em tomadas
Keep in contact with old friends, enjoy a drink now and then
Manter contato com velhos amigos, Convidá-los para um drink de vez em quando
Will frequently check credit at moral bank, hole in wall
Freqüentemente checar crédito no banco da moralidade e buracos no muro
Favors for favors, fond but not in love
"Uma mão lava a outra", carinhoso mas não apaixonado
Charity standing orders on sundays ring road supermarket
Caridade por débito automático, comprasdo mês aos domingos
No killing moths or putting boiling water on the ants
Não matar mariposas ou jogar água quente nas formigas
Car wash, also on sundays, no longer afraid of the dark or midday shadows
Levar o carro ao lava-jato, também aos domingos, não ter mais medo do escuro e das sombras
Nothing so ridiculously teenage and desperate nothing so childish
Nada é tão rididiculosamente adolescente e desesperadamente infantil
At a better pace, slower and more calculated, no chance of escape
Em um compasso melhor, mais lento mais calculado, sem chances de escapar
Now self-employed, concerned, but powerless
Agora auto-suficiente, aplicado, mas impotente
An empowered and informed member of society, pragmatism not idealism
Um membro capacitado e informado da sociedade, pragmatismo e não idealismo
Will not cry in public, less chance of illness, tires that grip in the wet
Não chorar em público, menor risco de adoecer, andar com pneus para chuva
Shot of baby strapped in back seat, a good memory still cries at a good film
Foto do filhinho com cinto e sentado no banco de trás, boa memória, ainda chora num bom filme
Still kisses with saliva, no longer empty and frantic like a cat tied to a stick
Ainda beija com saliva, não mais vazio e fora de si como um gato preso em uma estaca
That's driven into frozen winter shit, the ability to laugh at weakness
Que é levado a uma merda de inverno congelado, ter habilidade de sorrir da fraqueza dos outros
Calm fitter, healthier and more productive a pig in a cage on antibiotics
Calmo, adaptado, mais saudável e mais produtivo, um porco em uma gaiola cheio de antibióticos

Pessoas com vidas controladas, em busca de perfeição em detalhes, adequada a todos os padrões sociais figuram como personagens doentes, ou em depressão nos filmes como Beleza Americana e Clube da Luta.

Um aristocrata, latifundiário, rico, educado, comedido, cujo hobby era pesquisar o mistério dos mistérios, eis Charles Darwin.

Verdade seja dita, Darwin foi um grande pesquisador. Ele poderia simplesmente ter sido um fidalgo esnobe e preguiçoso, apenas a gastar o dinheiro de seu pai. Por exemplo, seu irmão mais velho, Erasmus Alvey Darwin (1804-1881), médico que não exerceu a profissão, viveu como “livre pensador”, ocioso e viciado em ópio, tudo às custas de seu pai... O dinheiro investido em Charles Darwin foi mais proveitoso!

Presto minha homenagem a esse homem, a Lamarck e Mendel por suas obras feitas em esmero científico, criatividade e ousadia. Eles contribuíram para a revolução científica que iria se prolongar, estabelecer e mudar completamente nosso cotidiano a partir do século XX.

O ano Darwin foi muito proveitoso para mim, que sou professor de evolução e cujos trabalhos científicos que publiquei contam da aplicação direta de metodologias para inferência de padrões evolutivos. Enriqueci minha pequena biblioteca com vários lançamentos, que somaram-se aos livros que já possuía (ver lista abaixo). Entre as revistas e textos que li aqui na internet, destaco: (1) “Lamarck Vive” de Marcelo Leite, publicado na Folha de São Paulo e reproduzido no Jornal da Ciência da SBPC; (2) no mesmo jornal da SBPC, ainda sobre o texto anterior, Raul A. Félix de Sousa escreveu “Bem mais justo seria passarmos a chamar "Lamarckismo-Darwinismo”. Os dois textos são formidáveis e complementares um, ao outro e também à história da teoria da evolução.

Lamarck, Darwin e Mendel perfazem meus dias de hoje no laboratório com ecologia, biologia celular e molecular, genética e métodos cladísticos.

Esse é meu cotidiano após 200 anos da publicação de "Philosophie Zoologique" de Lamarck, 150 anos da publicação de "On the Origin of Species" de Darwin e 144 anos da publicação de "Versuche über Planzenhybriden" de Mendel.

Saudações evolucionárias para todos!!!

(*)Sandwalk era a "trilha de meditação" que Darwin delimitou em sua casa para fazer caminhadas.

Lista de livros que recomendo sobre Darwin e Evolução:
Burnie, D., 2008. Evolução. Publifolha.
Carroll, SB., 2006. Infinitas formas de grande beleza - Como a evolução forjou a grande quantidade de criaturas que habitam o nosso planeta. Editora Jorge Zahar.
Cronin, H. e Smith, JM., 1993. The ant and peacock: altruism and sexual selections from Darwin to today. Cambridge University Press.
Darwin, CR., 2000. A expressão das emoções no homem e nos animais. Companhia das Letras.
Darwin, CR., 2002. Origem das espécies. 4 ed. Itatiaia Editora.
Darwin, CR., 2004. A origem do homem e a seleção sexual. Itatiaia Editora.
Dawkins, R., 1988. O relojoeiro cego. Editora Edições 70.
Dawkins, R., 1998. A escalada do monte improvável: uma defesa da teoria da evolução. Companhia das Letras.
Dawkins, R., 2000. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e encantamento. Companhia das Letras.
Dawkins, R., [1979] 2001. O gene egoísta. Editora Itatiaia.
Dawkins, R., 2005. O capelão do Diabo. Companhia das Letras.
Dawkins, R., 2009. A grande história da evolução. Companhia das Letras.
Dawkins, R., 2009. O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução. Companhia das Letras.
Desmond, A. e Moore, J., 2001. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. 4 ed. Geração Editorial.
Desmond, A. e Moore, J., 2009. A causa sagrada de Darwin - Raça, escravidão e a busca pelas origens da humanidade. Editora Record.
Gleiser, M., 2009. Entendendo Darwin. Editora Planeta do Brasil.
Gould, SJ., 1999. Darwin e os grandes enigmas da vida. Editora Martins
Gould, SJ., 2001. Lance de dados: a idéia da evolução de Platão a Darwin. Editora Record.
Jones, S., 2009. A ilha de Darwin - Galápagos em um jardim da Inglaterra. Editora Record.
Jordan, B., 2005. O espetáculo da evolução - Sexualidade, origem da vida, DNA e clonagem. Editora Jorge Zahar.
Keynes, R., 2004. As aventuras e descobertas de Darwin a bordo do Beagle. Editora Jorge Zahar.
Leite, M., 2009. Darwin. Publifolha.
Lopes, RJ., 2009. Além de Darwin - Evolução: o que sabemos sobre a história e o destino da vida. Editora Globo.
Margulis, L., 2001. O planeta simbiótico: uma nova perspectiva da evolução. Editora Rocco.
Mayr, E., 1998. O desenvolvimento do pensamento biológico. Editora UnB.
Mayr, E., 2006. Uma ampla discussão - Chales Darwin e a genese do moderno pensamento evolucionário. Editora FUNPEC.
Mayr, E., 2009. O que é evolução. Editora Rocco.
Meyer, D. e El-Hani, CN., 2005. Evolução o sentido da biologia. Editora Unesp.
Palmer, D., 2009. Evolução - A história da vida. Editora Larousse.
Rose, M., 2000. O espectro de Darwin: a teoria da evolução e suas implicações no mundo moderno. Editora Jorge Zahar.
SBPC, 2000. Ciência Hoje na Escola - Vol. 9: Evolução. Editora Global.
Slater, PJ. e Halliday, TR., 1994. Behaviour and evolution. Cambridge University Press.
Souza, S., 2009. A goleada de Darwin: sobre o debate criacionismo/ darwinismo. Editora Record.
Stefoff, R., 2007. Charles Darwin: a revolução da evolução. Editora Companhia das Letras.
Strathern, P., 2001. Darwin e a evolução em 90 minutos. Editora Jorge Zahar.
Thuillier, P., 1994. De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica. Editora Jorge Zahar.
Tort, P., 2004. Darwin e a ciência da evolução. Editora Objetiva.
White, M., 2003. Rivalidades produtivas: disputas e brigas que impulsionaram a ciência e a tecnologia. Editora Record.
Zimmer, C., 2003. O livro de ouro da evolução. Editora Ediouro.

Os textos citados sobre Lamarck:
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=61573
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=61699

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sobrevivência Humana: Um Epílogo Noir

Dia após dia, quando assuntos sobre o cotidiano humano e a sobrevivência de nossa espécie me vêm à mente, eu estranhamente só consigo lembrar um trecho de uma história em quadrinhos:

"
Ouça: dá para ouvir os gritos.
(...)
Ouça: dá para ouvir os soluços.
Na estrada, um choro desamparado vem da escultura de metal retorcido, borracha queimada e vidro estilhaçado [um avião que acaba de cair].
Nas ruas de Nova York, um grupo de fundamentalistas sabe que é o Armagedom; e eles continuam ali, presos à Terra. Desprovidos de êxtase, eles choram por terem sido abandonados por um deus repentinamente distante.
Na sala de rádio, Nan Fowler sabe que não tem mais ambulâncias para enviar e as chamadas não param de chegar.
Ouça.
Ouça a angústia de um mundo no qual as coisas ruins estão saindo da escuridão.
Ouça um mundo de dor.
Ouça. Você pode ouvir."

Neil Gaiman (1991: 1-2)

Referência
Gaiman, N., 1991. Sandman – Som e Fúria. Editora Globo, Vol. 1, no. 7.

Sobrevivência Humana: A Ciência, a Arte e o Fim


"Mas, por fim, sentimos faltar-nos o apoio, e resvalamos no vácuo, e precipitamo-nos pelo éter" (Aluísio de Azevedo, 1895).

Mitos para o fim do mundo existem em várias culturas, parece uma percepção humana de que nada é para sempre, de que tudo se transforma e há um novo recomeço. Os dias se sucedem, vão-se as estações, nós envelhecemos, nossos filhos crescem e voltamos ao pó das estrelas de que somos compostos, mas a vida continua!

O sentido da vida? Já escrevi aqui em um de meus momentos mais inspirados:

[clique]
O coleóptero de Kafka, a vida, a morte e a beleza da matéria

Desde então, eu não mudei de opinião, tão pouco li algo novo a respeito. Para mim a vida continua objetivando ela própria e não possui compromisso algum com nossos desejos individuais.

Entre os efeitos emergentes de nossa mente, o senso de estética autapomórfico nos torna humanos de verdade. Na arte, música e literatura estaremos sempre exercendo aquilo que chamamos “espírito humano” e para além de nossa espécie, pintamos, cantamos escrevemos poemas de amor pela Terra e todos os seres vivos.

Há ainda outro empreendimento humano que possui o mesmo valor: a ciência.

Retratando isso em uma visão romântica: ciência é o caminho da verdade, mas nunca adotando uma única voz como dogma. Não seguimos Charles Darwin, ou acendemos velas em louvor a Albert Einstein! Concordamos com algumas de suas propostas que foram comprovadas por fatos. Algumas, porque eles não acertaram tudo aquilo que proporam. Seus maiores erros foram a pangênese (Darwin) e a constante cosmológica (Einstein). Além dos erros, as vidas desses homens não são modelos para adotarmos como se fossem gurus religiosos. O caminho da ciência segue pelos erros e acertos, entre misantropos e filantropos.

A ciência compreende a única forma para podermos compreender o presente, passado e imaginar (*) nosso futuro. “Pé no chão”, sem delírios nefelibatas e quando falamos sobre algo é bom levar a sério. Por exemplo, o aquecimento global atual é fato comprovado! Pergunte aos ursos polares se você tem alguma dúvida disso.

Nossa conversa a respeito da Sobrevivência Humana é centrada na ciência e seus fatos: (1) petróleo não é recurso renovável, (2) nossa natureza humana é cooperativa (somos primatas sociais altruístas recíprocos), (3) os continentes estão se movendo por causa da dinâmica da Tectônica de Placas, (4) temos centenas de inimigos biológicos e (5) somos todos animais com limites adaptativos para a sobrevivência, ponto.

Estudando o passado, sabemos que houveram cinco grandes eventos de extinção em massa: (1) a ordoviciana (1.435 milhões de anos), (2) a devoniana (2.345 milhões de anos), (3) a permiana (250 milhões de anos), (4) a triássica (195 milhões de anos) e (5) a cretácea (65 milhões de anos). Em "Consiliência" (1999) o entomologista americano Edward O. Wilson considerou nossa ação no mundo como o sexto evento de extinção em massa das espécies biológicas. Nós humanos somos piores que meteoros, vulcões, terremotos, agentes infecciosos, deriva continental... piores do que tempestades solares. O sexto evento de extinção em massa agora no Holoceno... O agente responsável? Um macaco nu e arrogante do Pleistoceno.

Se toda essa destruição estivesse trazendo bem estar para nós, talvez fosse difícil falar disso para as pessoas comuns. A história das civilizações grandiosas que encontraram seu colapso nos dá profundo medo e toda a miséria que vemos em nossa volta molda nosso presente, eclipsa nosso futuro.

Vamos unir as duas coisas agora: mitos do fim do mundo + linguagem científica = previsões pseudocientíficas equivalentes à astrologia!

Algumas pessoas se aproveitam de jargões e hipóteses científicas ainda não completamente estabelecidas para formular cenários futuros, ou mesmo filosofias de vida para lá de duvidosas (ver Sokal e Bricmont, 1999). Se você não entender o que alguém de título de ‘doutor’ falar, ou escrever, muito provavelmente não é discurso sério, tão pouco ciência de verdade. Os jargões são muitas vezes usados de forma errada, em contextos totalmente diferentes e inapropriados de sua verdadeira origem. Por exemplo, fala-se “amor quântico”, “Evolução espiritual” e “defesa da Ecologia (**)”. Mecânica Quântica, Evolução Biológica e Ecologia não têm nada haver com sentimentos humanos, ou mundos metafísicos. As duas primeiras são teorias científicas e a última um ramo de qualificação profissional.

Há previsões seguras na ciência para a sobrevivência humana? Todo cenário de previsão é especulativo, vejam como exemplo as previsões diárias do tempo. A Metereologia é uma ciência que estuda sistemas caóticos dinâmicos (ver Lorenz, 1996: 99-137). Apesar de todos os avanços (***) não dá para fazer previsões razoáveis em 24 horas. Pessoas sofrem com tempestades, furacões, tsunamis e terremotos... completamente inesperados!!! Se não conseguimos ainda prever eventos assim, estamos muito mais longe do poder desejado de controlar o clima. Apesar da pompa de “macaco tecnológico”, continuamos tão frágeis às mudanças climáticas quanto qualquer outro ser vivo.

Você pode pensar que é uma tremenda bobagem esse desejo humano de tentar entender e controlar as coisas. Afinal, se não conseguimos fazer isso com computadores e nanotecnologia nenhuma outra forma de vida poderá.

Engano seu!!!

As bactérias estão "seguras de si mesmas", não sofrem qualquer ameaça de extinção, são eternas de verdade e controlam todo o planeta!!! O oxigênio e a camada de ozônio, os solos, os ciclos da matéria, a base primária de todos os ecossistemas... são controlados por elas!!! Nossa! Parece o conto de H. G. Wells, Guerra dos Mundos, não é?! Só que aqui nós nos comportamos como os invasores!!!

O planeta Terra pertence às bactérias, nós somos apenas passageiros efêmeros por aqui.

Penso agora palavras positivas para encerrar esta série de textos. Eu procurei em meus livros, revistas e aqui na internet, mas sempre estamos escrevendo e falando sobre o fim de nossos dias, seja na religião, ou mesmo na ciência.

Os dados científicos que temos apontam para uma verdade: não há eternidade para seres pluricelulares (animais e plantas) (****). Sempre há a extinção por um evento natural, ou a transformação de uma espécie ancestral em seus descendentes. Nada ficou como estava, nada permanece o mesmo. Há 3,5 bilhões de anos a matéria se manifestou neste planeta de forma incomum... Surgiu o que compreendemos como vida. Os seres mais perfeitos até hoje são os replicantes moleculares iniciais: as bactérias, as infinitas formas de grande beleza.

Nós surgimos na história evolutiva da feiúra e imperfeição dos experimentos dos sistemas biológicos ditos "complexos". Nossa função?! Se não é preservar e reproduzir a Biota Mãe (Gaia), então seremos apenas "contadores de histórias".

Após nossa breve e ridícula passagem pela vida... Após macaquearmos o mundo inteiro numa piada mortal para as espécies que destruímos e toda a dor que infligimos até mesmo aos nossos pares de espécie... Deixaremos textos como este, escritos como uma nova forma de pintura rupestre feita de virtualidade, plástico e sentimentos primatas do Pleistoceno!!!

As futuras formas de vida inteligentes, derivadas novamente das bactérias, irão decifrar, ler e aprender com os nossos erros. Já que nós mesmos não conseguimos fazê-lo.

Essa foi a minha passagem literária para esta série inspirada em Aluísio de Azevedo no conto "Demônios".

Ainda bem que temos a Arte! Sem ela não valeria a pena viver!

A sobrevivência humana está para além da ciência!

(*) Imaginar é diferente de predizer.
(**) O correto é falar em “defesa do meio ambiente”. Salvar a Ecologia faz tanto sentido quanto salvar outros ramos profissionais das Ciências Biológicas como Zoologia, Genética, Embriologia, etc., etc.
(***) Chover no molhado: no mundo inteiro investimos muito mais em armas do que em pesquisa científica.
(****) Talvez as hidras e os Myxozoa sejam exceção à regra e eternos.

Referências
Azevedo, A., [1895] 2007. Demônios. Editora Martins Fontes.
Sokal, AD. e Bricmont, J., 1999. Imposturas intelectuais. Editora Record.
Lorenz, EN., 1996. A essência do caos. Editora UnB.
Wilson, EO., 1999. Consiliência: a unidade do conhecimento. Editora Campus.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Sobrevivência Humana: Limites

Paz. Paz absoluta. Felicidade absoluta. A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se extinguisse a Vida – tudo rigorosamente de acordo com a senha divina. Só Adão, o macaco lesado, discrepava, piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa idéia”. (Monteiro Lobato, 1923: 29).

A vida tem limites, por mais extremos que sejam. Eu sempre tive curiosidade sobre como os seres vivos conseguem viver nesses limites. Essa curiosidade me levou a cursar em meu doutoramento a disciplina “Adaptações e Mecanismos Funcionais dos Animais a Ambientes Especiais” da queridíssima professora de fisiologia Rosa Maria Veiga Leonel. Aprendi um pouco sobre a criatividade da evolução por seleção natural em gerar seres que vivem em ambientes impossíveis para nós humanos. Mas, o que significa esse “impossível” da sobrevivência humana?

Toda resposta de sobrevivência humana a um determinado ambiente está dentro de seus limites de adaptabilidade animal. Ao compreendermos o que somos e de onde viemos nos dá mais vantagens ainda para nosso sucesso enquanto espécie biológica.

Somos grandes primatas e nossa terra natal é a África. Nossos corpos foram moldados nas savanas e não são tão diferentes de nossos outros irmãos chimpanzés, gorilas e orangotangos. Só para vocês terem uma idéia disso, em 1699 o cirurgião inglês Edward Tyson realizou a primeira dissecação de um chimpanzé (ele achava que era um orangotango) na Inglaterra. Edward Tyson comparou o espécime com todos os outros macacos que ele conhecia até então e concluiu que o chimpanzé possuía 47 características idênticas a nós humanos e apenas 34 com os outros símios. Alguns filósofos do século XVIII como Jean-Jacques Rousseau chegaram a pensar que os chimpanzés eram capazes de falar e só não faziam isso, porque compreendiam que seriam imediatamente escravizados por nós e postos para trabalhar (ver Nouel-Rénier, 2009: 12-17).

Hoje temos mais evidências ainda através da paleontologia, etologia e biologia molecular: somos um tipo de grande macaco (do inglês "ape") com poucos pêlos!!!


Quais os nossos limites biológicos?

Pessoas normais podem viver em temperaturas que variam de -5 até 50 graus Celsius, desde o nível do mar até altura máxima de 5.800 metros. Esses limites foram quebrados por pessoas especiais como atletas em busca de recordes, mas compreendem as fronteiras de nossa sobrevivência. Não esqueçamos ainda que precisamos de água potável em cada um dos lugares que residirmos.

Para entendermos quem e como somos nós, basta comparar com outros animais. Não somos tão frágeis quanto águas-vivas, pouco menos tão resistentes quanto os tardígrados. Em outras palavras, nosso corpo de mamífero não possui nada de extraordinário. Como no conto de Monteiro Lobato, somos um tipo de macaco bastante ordinário.

Entretanto, nós grandes macacos possuímos grandes cérebros! O correto é escrever “grandes mentes”, já que não é o simples tamanho do cérebro em si, caso contrário a baleia azul estaria digitando uma história diferente desta. Desenvolvemos cultura o que permite ensino e aprendizado extracorpóreo, ou seja, literalmente, para sermos o que somos a educação é tudo!!!

Temos então dois complexos de estruturas, um animal que comporta nossas necessidades biológicas e outro cultural, onde crenças, costumes e tecnologia nos complementam e fazem-nos o que somos: macacos humanos.

Apesar dessa simplicidade, levou tempo para entendermos tudo isso. Estudar o ser humano era tarefa de disciplinas separadas como Antropologia e Arqueologia. O pioneiro em estudos multidisciplinares foi o professor americano Emilio F. Moran que escreveu o clássico “Adaptabilidade Humana – Uma introdução à antropologia ecológica”. Para Moran o estudo das características funcionais e estruturais das populações humanas serve para compreendermos como nós enfrentamos as alterações ambientais e condições de estresse. Nós humanos temos uma plasticidade de respostas socioculturais e fisiológicas. As primeiras compreendem vestimenta, abrigo e várias formas de organização social que ajudam a adequar os ajustes de nossa espécie ao ambiente. As respostas fisiológicas são mais lentas como o aumento de eritrócitos diretamente proporcional à altitude em que se vive (Moran, 1994). Esses condicionamentos socioculturais e fisiológicos não correspondem às mudanças adaptativas no sentido genético da palavra, por isso, são todos reversíveis e modificáveis dentro dos limites humanos de sobrevivência.

Nem tudo são flores, sobretudo quando falamos de nós mesmos. As sociedades mais ricas e tecnologicamente mais avançadas de hoje enfrentam problemas ambientais e econômicos crescentes que não devem ser subestimados, tendo em vista os exemplos de nossa história: as sociedades norte-americanas Anasazi e Cahokia, as civilizações Maias, a Grécia Miceniana e Creta Minóica na Europa, o Grande Zimbábue na África, as cidades asiáticas de Ankor Wat e a ilha de Páscoa no oceano Pacífico. Todas essas civilizações destruídas por colapso sócio-econômico e ambiental, alerta-nos o professor de geografia americano Jared Diamond (2005) para que não tenhamos o mesmo fim.

Quando cursei doutorado, meu professor de Biogeografia, José Maria Cardoso da Silva (Instituto “Conservation International” do Brasil), deixou claro o que significava endemismo. Até então, minha idéia sobre isso era bem tradicional e limitada. Espécies endêmicas são restritas a um ambiente específico em uma dada região da Terra. Por exemplo, o pássaro conhecido como soldadinho-do-Araripe [Antilophia bokermanni (Coelho & Silva, 1998)] só vive exclusivamente na Chapada do Araripe aqui no interior do nordeste (na fronteira Ceará, Pernambuco e Piauí). Já nós humanos falamos a todo peito que somos cosmopolitas, que podemos viver em qualquer continente da Terra. Foi isso que José Maria chamou a atenção ao falar sobre endemismo, “vivemos apenas na Terra”!!! Somos endêmicos deste planeta, nossos corpos foram moldados pela seleção natural para sobrevivermos apenas em limites terrestres. Segundo a fisiologista inglesa Francis Ashcroft (2001: 226) o ser humano só pode sobreviver no espaço se levar seu ambiente consigo.

O que é estranho após esses parágrafos? Para mim é saber que a grande maioria das pessoas não sabe do mínimo disso que está escrito aqui. Se nossa sobrevivência possui limites como a de qualquer outra criatura viva deste planeta... podemos ser extintos por uma perturbação global desses limites! Quanto mais dependemos de tecnologia e adotamos uma vida baseada em mentiras como o dinheiro, mais frágeis ficamos em termos de sobrevivência.

No conto de Monteiro Lobato o desenvolvimento da inteligência do chimpanzé Adão levou o mundo aos extremos da crueldade, da astúcia e da estupidez. Nessa história foi a “chimpanzeização do mundo” por uma dolorosa caravana de macacos nus, em atropelada marcha para o desconhecido.

A sobrevivência humana depende da manutenção de nossos limites biológicos.

Referências
Ashcroft, F., 2001. A vida vida no limite: a ciência da sobrevivência. Editora Jorge Zahar.
Diamond, JM., 2005. Colapso: como as sociedades escolheram o fracasso ou o sucesso. Editora Record.
Lobato, M., [1923] 2008. O Macaco que se fez homem. Editora Globo.
Moran, EF., [1982] 1994. Adaptabilidade humana - Uma introdução à antropologia ecológica. Edusp.
Nouel-Rénier, J., 2009. Foi assim que o homem descobriu que o macaco é nosso primo. Companhia das Letras.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Sobrevivência Humana: Inimigos Biológicos

É exatamente meio dia, você está chegando em casa, prepara-se para o almoço quando de repente escuta o bater na porta: "toc-toc".

Quem será? Por que justamente você foi escolhido para ter visitas na hora do almoço? Que sorte, hein?! Ou o maior azar?!

Agora em 2009 comemoramos 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos pela publicação de sua obra máxima “A Origem das Espécies” (*). Evidências e fatos empíricos da Evolução estão hoje muito bem descritos na literatura. Entre as evidências lista-se a microevolução, onde espécies que surgiram bem diante de nossos narizes, seja por nossa intervenção (hibridação, manipulação genética, etc.), seja por fatores naturais. Um dos exemplos desse último caso compreende a origem de novos vírus letais a nós humanos. No ano de celebração a Charles Darwin, vimos o surgimento de mais uma nova geração de vírus da gripe. Centenas de pessoas estão mortas e muitas outras centenas estão enfermas... Os vírus continuam no ar e evoluem...
O pior disso tudo é que os vírus da gripe não são os nossos únicos inimigos biológicos!!! Bactérias, protozoários, platelmintos, nematelmintos e artrópodes, a lista é muito grande! Olhem apenas para a diversidade de formas e cores das bactérias abaixo:

Caso você tenha lido os posts mais antigos deste blog, lembrará do que eu faço no dia a dia. Pesquiso parasitas das vias respiratórias dos vertebrados:

[clique]
Hipóteses
[clique] Implicações


Já no post anterior (
Sobrevivência Humana: Tudo Mudará para Sempre) ficou mais do que claro que a regra da natureza é a mudança! Nós estamos mudando de lugar no espaço-tempo desde a singularidade do big-bang que deu origem ao universo. Isso ocorre macro e microscopicamente.

Desde o início da vida estamos em uma corrida armamentista contra nossos inimigos biológicos. Isso se chama Teoria da Rainha Vermelha, mudamos para nos tornar mais eficientes, ou apenas enganar nossos predadores e parasitas. Entretanto, essas criaturas fazem o mesmo! O resultado dessa história são gazelas e guepardos velozes com a mesma capacidade.

Se predadores e parasitas (**) forem muito letais, suas presas e hospedeiros sucumbem ao ponto de se extinguirem. No início isso pode não ser tão grave para inimigos generalistas. A maioria dos parasitas que estudo, por exemplo, os de lagartos, parasitam várias espécies ao mesmo tempo. A desvantagem é enfrentar tudo diferente em larga escala: sistemas imunológicos diversos, hábitos alimentares variados e muitos outros micro e macroparasitas que competem pelos mesmos recursos (às vezes o mesmo local de fixação no hospedeiro).

Tornar-se específico possui vantagens nesse contexto, desde que o parasita não seja letal para seu hospedeiro. Isso pode ser a origem de toda a relação mutualística e simbiótica. Da antítese à síntese, segue assim a dialética da natureza!

Quantos inimigos biológicos nós humanos possuímos?

É difícil de responder com números e a estimativa é sempre imprecisa!!! Há milhões de espécies de animais, algas, plantas e fungos que não conhecemos e ainda muito mais de microrganismos do mesmo jeito. Soma-se a isso a evolução: "tudo está em constante modificação"!!

Entretanto, nós que estudamos parasitas sabemos de algumas coisas. Uma das mais importantes: a quantidade de parasitas é diretamente proporcional ao aumento da densidade das populações dos seus hospedeiros. Simples assim, maior o número de hospedeiros, maior o número de parasitas à espreita. Isso vale para nós e toda nossa criação de animais. Dessa forma, conhecemos muito bem de onde vem todas as nossas piores doenças infecciosas desde a revolução agropecuária, não é mesmo? Vivendo todos “juntinhos”, nós em bilhões de indivíduos juntos com animais e plantas domésticas. Tudo isso fica muito melhor ainda... para os parasitas, claro!

O convívio com zoonoses viróticas levou a morte milhões de pessoas. Por exemplo, os europeus sofreram séculos e séculos por causa do sarampo e varíola. Os que sobreviveram levaram consigo Morbillivirus e Orthopoxvirus para as Américas, desencadeando assim uma guerra biológica silenciosa e invisível que foi decisiva para a conquista do Novo Mundo. Sem contato prévio com esses inimigos, os sistemas imunológicos dos ameríndios estavam desprotegidos. Impérios caíram, milhões de pessoas morreram diante dessa força natural. Os europeus tinham razão, eles possuíam uma força divina ao seu lado... Só não sabiam que a natureza dessa força não tinha nada haver com algo metafísico.

Perguntei aos meus alunos no laboratório há 15 dias:

Por que somos a maior população de vertebrados da história deste planeta?

Resposta: porque conseguimos “escapar de nossos inimigos” (***), da mesma forma que animais exóticos e invasores. Além de nossa diversidade imunológica, que já é uma arma muito eficiente, usamos nossa inteligência primata em termos científicos para desenvolver fármacos, saneamento público, vacinação em larga escala, controle de zoonoses e pragas das culturas agropecuárias.

Assim como canta a canção em nosso Hino Nacional, nós humanos somos gigantes pela própria natureza, belos, fortes e impávidos colossos. Todavia, nosso futuro não espelha essa grandeza! Somos bilhões de indivíduos vivendo em grandes centros de alta densidade populacional. Um paraíso para nossos inimigos naturais. Hoje em dia, seguramos a porta de nossas cidades para manter fora delas esses terríveis seres... Mesmo assim, bactérias conseguem viver em reatores nucleares, ou mesmo a temperaturas acima de 95 graus Celsius. Contra criaturas assim, deveríamos esperar que, por seleção natural, aquelas bactérias que combatemos com antibióticos poderiam desenvolver resistência aos nossos medicamentos. O que já aconteceu há décadas!

Os vírus?! Se nossa definição de seres vivos não se encaixa bem a eles, então vamos encarar a realidade do que essas criaturas são: “replicantes moleculares” altamente eficientes e mutáveis.
Esses replicantes não possuem qualquer outro objetivo senão fazerem cópias de si mesmos utilizando para isso nossas células de diferentes maneiras. Como todo parasita novo, ao surgir possuem alta virulência (transmissão e mortalidade), após algumas gerações vivendo juntos, a virulência diminui, ou mesmo pelo simples aumento da resistência imunológica dos hospedeiros, tudo pelo jogo da seleção natural que elimina os vírus muito letais com a morte de parte dos hospedeiros e a sobrevivência dos mais resistentes. Nesse jogo de evolução co-específica, seguimos os caminhos através do espelho de Alice e a Rainha Vermelha, correndo todos juntos e não indo a lugar algum. No saldo final, passamos a conviver nós e eles até o fim dos tempos. Nesse cenário, nós somos as gazelas e eles os guepardos. É bom você correr, porque senão, o bicho pega!

Esperávamos pelo H1N1 e deixamos claro para todos, que ainda haverá mais pandemias ainda neste século. Afortunados os que sobreviverão, mas deveríamos reverenciar aqueles que morreram e morrerão em holocausto, eliminando consigo as primeiras cepas letais dos nossos novos e velhos inimigos biológicos.

Em muitos casos não esqueça de adicionar ainda a essa fórmula viver sem saneamento público, poluição e destruição de ecossistemas. É estranho como de um lado enfrentamos os inimigos com ciência e do outro “liberamos geral” devido ao nosso lindo e maravilhoso sistema sócio-econômico de exclusão social!!! Somos um paradoxo!

O resultado desse paradoxo é que temos explicitamente a distribuição de nossos inimigos biológicos conforme a divisão social. Seguem alguns números "otimistas" disso obtidos aqui na internet: mais de 100 mil pessoas morrem por ano de ascaridíase (lombrigas)!!! Aqui no Brasil estima-se que 14 mil pessoas morrem por ano de doença de Chagas!!! Se você não está sensibilizado com toda essa dor, saiba que apenas no Rio de Janeiro registra-se 800 mortes por ano de tuberculose e em todo o país são cerca de 5 mil mortes por ano.


Todas essas doenças e outras estão ligadas à pobreza e parecem longe demais das TVs e noticiários. Já a gripe A, vem pelo ar, afeta quem viaja muito e está em qualquer lugar. Acomete a “classe média” e os dominantes. É um terror de dois pesos e duas medidas: morram os pobres, salvem os ricos!

Antes de terminar, vamos caminhar pelos “jardins do senhor”, vejamos algumas das criaturas “lindas” que estão a nossa volta há milhões de anos como o mosquito flebótomo e as larvas das moscas
Oestrus ovis:

A dor de cada um está na medida do encontro conflituoso entre nós e eles.

No século XIV enfrentamos a peste negra, no início do século XX foi a gripe espanhola... Milhões de pessoas sucumbiram para eu e você estarmos aqui. Elas não tiveram escolha, apenas falta de sorte ao encontrar com seus velhos e novos inimigos biológicos. Em diferentes épocas e países essas pessoas abriram as portas de suas casas e lá estavam seus inimigos invisíveis. Foram encontros mortais em larga escala!!!

Somos apenas criaturas biológicas como qualquer outra, parasitados e predados por várias espécies de seres vivos.

Todos os dias e noites nossos inimigos biológicos batem à porta: "toc-toc"!!!

A sobrevivência humana segue à evolução das espécies!
---

(*) Aguardem o post do Macaco Alfa comemorativo do Ano Darwin.

(**) Sobre predadores e parasitas é sempre bom ler (ou reler, caso você seja biólogo) as seguintes referências básicas:

Begon, M., Townsend, CR. e Harper, JL., 2006. Ecology - From individuals to ecosystems. 4 ed. Blackwell Publishing.

Bush, AO., Fernández, JC., Esch, GW. e Seed, JR., 2001. Parasitism - The diversity and ecology of animal parasites. Cambridge University Press.

Poulin, R., 2006. Evolutionary ecology of parasites. Princeton University Press.

Obs.: Tentei ser o mais simples possível evitando todo o jargão conhecido por nós biólogos. Se exagerei na simplicidade do texto, compenso com a indicação da literatura básica (não deixem de ler, ok?!).

(***) Alguns artigos legais sobre “escape-to-enemy hypothesis” em animais e plantas:
http://www.springerlink.com/content/1j7502uq634j3r00/fulltext.pdf
http://www.nceas.ucsb.edu/~torchin/pdf/Torchinetal2002_Paras.pdf
http://www.werc.usgs.gov/chis/lafferty.pdf
http://johnprenter.googlepages.com/Prenteretal2004TREE.pdf
http://www.pubmedcentral.nih.gov/picrender.fcgi?artid=1809948&blobtype=pdf
http://www.springerlink.com/content/rrl06r7133437r3x/fulltext.pdf

Notícias relacionadas:
http://cienciahoje.uol.com.br/65653
http://www.anovademocracia.com.br/content/view/2324/105/
http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=47441
http://www.sidneyrezende.com/noticia/49831+mais+de+mil+pessoas+ja+morreram+por+causa+da+gripe+suina+no+mundo

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Sobrevivência Humana: Tudo Mudará para Sempre

Ontem nós aqui no Brasil vimos pela TV os tufões, tempestades e terremotos que destruíram cidades e mataram milhares de pessoas em países asisáticos. Tudo resultado de forças naturais, acentuadas ou não pela ação humana no planeta.

Em um milhão de anos de nossa existência como seres humanos sobrevivemos a todas as catástrofes naturais até então. Claro, nada em grande escala, mas fomos fortes o suficiente para resistir à glaciação, furacões, tsunamis, secas terríveis... Até agora fazemos parte dos animais “duros de matar”!!!

Ok, grande parte do que for escrito aqui está naquele nível de “conforto” que resulta no nosso “
Ufa! Eu não estarei vivo para ver algo assim!” descrito no post "Sobrevivência Humana: Natureza e Modelos Sócio-econômicos ". No início do livro “Bilhões e Bilhões” (1998), Carl Sagan deixa claro que nossa mente não foi construída pela evolução para previsões sobre nossa vida além de nosso tempo de existência. Compreender eventos de milhões e bilhões de anos é uma novidade para nós.

Hoje em dia temos certezas muito similares as de alguns pensadores da Grécia pré-socrática como Heráclito de Éfeso (540-470 a.C) que já bem sabia: “
não entramos no mesmo rio duas vezes!”. Após mais de mil anos de ensino de Platão/ Aristóteles, onde as coisas do mundo possuíam essências fixas e imutáveis, encontramo-nos aqui na “virada do jogo”, tremendo no íntimo por saber da revelação dessa verdade absurda. Confirmado pela ciência nos séculos XIX e XX: o planeta Terra mudou e continuará mudando!!!

Mesmo se conseguissemos parar todas as emissões de gases, reciclássemos em larga escala nossos dejetos e parássemos completamente com a devastação das florestas tropicais e outros ecossistemas... a Terra ainda assim será muito diferente do que vemos hoje.

Tudo o que você conhece perecerá, tudo irá se transformar em algo completamente diferente!

Você saberia responder qual a maior força de modificações por trás disso? Vulcões, clima, tempestades solares, meteoros? Nenhuma dessas forças é tal como a Deriva dos Continentes através da Tectônica de Placas. Na verdade, muitos desses eventos (vulcanismo, terremotos e mudanças no clima) são causados pela “simples” e contínua dinâmica da Tectônica de Placas, exceto as forças cósmicas como meteoros e tempestades solares.

Compreenda o que é “simples assim”: nosso continente Sul Americano está se deslocando 18 cm por ano rumo ao Oeste... e em 50 milhões de anos estaremos onde hoje é localizada a Oceania! Estaremos separados de todos os outros continentes e... Seremos a Austrália do futuro!


Agora é só usar um princípio comum e amplamente aceito na ciência: o uniformitalismo. A deriva continental, as características físicas e as respostas dos sistemas biológicos a isso deverão ser similares nos 50 milhões de anos no futuro ao que vemos no tempo atual. Assim compreendemos que os cinco eventos de extinção em massa deste planeta estão envolvidos em grande parte as mudanças drásticas resultantes do movimento dos continentes. À exceção a isso é a hipótese amplamante aceita do meteoro que caiu em Yucatán e mudou todo o clima causando à extinção de cerca de 60% da vida multicelular!!!

Parêntese 1: Quando falamos em mudanças de clima e qualquer outro evento classificado por nós como “catastrófico” isso está relacionado apenas à vida de animais e plantas. Já as bactérias são criaturas que beiram à perfeição da matéria viva! Além de eternas em vida, até hoje dominam, moldam este planeta e não estão ameaçadas por qualquer um dos eventos que possam nos exterminar. As bactérias poderão ter um fim definitivo apenas há bilhões de anos à frente com a morte do Sol e devastação completa deste sistema solar. Caso um meteoro grande o suficiente parta esse planeta em pedaços, até no interior de cometas as bactérias poderão sobreviver. Nós não!

Parêntese 2: Lembram-se do post “
Os esporos reprodutivos de Gaia”? Nele escrevi sobre a hipótese Gaia, a qual se correta, podemos, de forma otimista, interpretar a existência humana com o objetivo para a reprodução da Terra através do espaço. Mas, se não formos nós, seres conscientes, os esporos reprodutivos da Terra, muito provavelmente poderão ser bactérias... Talvez de forma mais eficiente ainda do que nós!

Parêntese 3: O parágrafo passado é a base do que se compreende como hipótese da Panspermia, onde as sementes da vida estão espalhadas pelo universo na forma de bactérias, ou algo mais simples como vírus, ou coacervados de RNA, ou seja lá como forem esses “cosmozoários”!

Voltemos para as mudanças naturais de nosso planeta. Se tudo continuar como é hoje, sem a queda de um meteoro, ou o máximo solar com buracos na camada de ozônio, veja abaixo o mapa de nosso mundo em 250 milhões de anos no futuro, apenas considerando o resultado da Deriva Continental:

Isso mesmo!!! Uma nova Pangea será formada!!! É o eterno retorno da Gaia Ciência de Nietzsche.

Essa é uma previsão científica otimista e tema do livro “After Man: A Zoology of the Future (Depois do Homem: Uma Zoologia do Futuro)" publicado em 1981 pelo paleontólogo escocês Dougal Dixon. Foi também a idéia máxima para o famoso documentário da BBC “The Future is Wild” (no Brasil exibido pelo Discovery Channel com o título “Futuro Selvagem”).

Sabendo de tudo isso, confesso que eu fico sempre surpreso com a ingenuidade de alguns de meus alunos na disciplina de Evolução. Todos me ouvem falar repetidamente que o processo da evolução dos sistemas biológicos corresponde à “mudanças no tempo através de descendência”... Para sobreviver às mudanças do planeta nós também temos que mudar, ou deixamos de existir. Entretanto, parte de meus alunos acha que a simples defesa e conservação do atual meio ambiente irá mantê-lo inalterado por tempo indeterminado. Por tudo isso, explico, primeiro, conservar os recursos naturais é uma atitude para nossa sobrevivência, prioritariamente! Segundo, isso não quer dizer de forma alguma conservar um bem imutável. Novamente, não se esqueçam da sabedoria grega: “
tudo muda, tudo se transforma”.

Outros alunos meus também acham que a evolução tem como único mecanismo de ação a seleção natural e interpretam esse mecanismo apenas como uma competição inter e intra-específica (a popular natureza com "dentes e garras rubras de sangue"). Ignoram além disso quase completamente o papel do acaso e as forças ambientais maiores que desafiam a sobrevivência dos sistemas biológicos de forma muito mais perigosa do que vemos em nosso tempo presente, ainda em relativo equilíbrio.

Essa fase de relativo equilíbrio antes das grandes mudanças também já foi proposta em termos do “Equilíbrio Pontuado” pelos paleontólogos norte-americanos Niles Eldredge e Stephen Jay Gould (1972). O registro dos fósseis (com o desaparecimento repentino de vários grupos e surgimento de outros), antes considerado apenas fruto do acaso, foi reinterpretado por Eldredge e Gould como verdadeiro para explicar as grandes mudanças de fauna e flora. Parece que, com regularidade, ocorrem grandes modificações na Terra, as quais são muito rápidas e inicialmente hostis as formas de vida. Resultado: extinção em massa! Os sobreviventes dessas mudanças radicias então multiplicam-se em linhagens descendentes mediante a um novo período de equilíbrio. Em palavras mais comuns, “depois da tempestade, vem a bonança”!!! Ou como na música da banda de norueguesa A-ha: “
Out Blue Comes Green” (expressão que significa algo como “da tristeza surge a esperança”).


O mundo como conhecemos irá mudar completamente! É fato! Mas nós Sobreviveremos? Antes de responder a essa pergunta compreendam que nossa espécie só possui um milhão de anos de idade. Isso não é nada em termos da vida das espécies neste planeta! Por exemplo, artrópodes como os trilobitas viveram mais de 300 milhões de anos antes de serem completamente extintos! Por isso, quando falamos de sobrevivência humana, os dois posts anteriores nos preocupam muito mais do que os eventos catastróficos naturais. Já está mais do que alardeado em todas as línguas e países: nós podemos nos exterminar!!! Nem saímos de nossa infância enquanto espécie... Tão orgulhosos e cheios de vaidades do que somos! Criamos deuses à nossa imagem e semelhança, linguagem, computadores, biotecnologia e... vamos cometer suicídio pela destruição dos recursos naturais e modificação dos ecossistemas que nos mantem vivos?

Por quê? Para manter os padrões de consumo de uma minoria egoísta?! Olha como voltamos para o post anterior? Notaram agora como o cuidado ambiental e os modelos sócio-econômicos que adotamos são importantes para nossa sobrevivência?

Então, respondendo a pergunta inicial sobre nossa sobrevivência... Sim,
se não nos destruirmos antes, muito provavelmente sobreviveremos em mundos climáticos diferentes dos de hoje resultantes da Deriva Continental.

Como sempre há uma conjunção adversativa, segue o “Todavia”... há ainda que se considerar fatores completamente resultantes do acaso. No best seller mundial “Apocalipse 2012” (2007), escrito pelo jornalista norte americano Lawrence E. Joseph, é apresentada a possibilidade do fim de nossa vida como compreendemos hoje por diversos fatores naturais envolvendo principalmente nosso Sol e o espaço. Se realmente a hipótese do máximo solar e da entrada de nosso sistema planetário em uma zona galáctica de maior energia (com um crescente fluxo de matéria que aumenta a atividade do Sol)... então haverá mais instabilidade ambiental do que apenas a deriva continental. Pior, isso está sendo apontado para agora! Daqui a três anos segundo o Calendário Maia... É uma nova sensação fictícia do apocalipse e agora com filme de magníficos efeitos especiais mostrando a destruição de tudo!!!

Isso não passa de sensacionalismo causado por descobertas e divulgação científica. Vocês já se esqueceram de filmes como "Armaggedon" e "Impacto Profundo"?! A ameaça de nosso fim na ficção cinematográfica semelhante à hipótese de extinção dos dinossauros foi moda alguns anos atrás. Em todo caso... sempre saímos bem nessas histórias!!! Na vida real... talvez não tivéssemos a mesma sorte.

A principal força de sobrevivência humana constitui nossa inteligência e versatilidade para usá-la em diversos ecossistemas. Das geleiras até as ilhas vulcânicas... Sobrevivemos até agora! Em mundos bem diferentes deste atual feito de fibra óptica, plástico e virtualidade.

Apenas não esqueçam, quer gostemos ou não disso... Tudo mudará para sempre!!!

Ontem a terra tremeu no Japão...

Links:
http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/1755
http://www.sivatherium.h12.ru/library/Dixon/main_en.htm
http://www.sivatherium.h12.ru/library/Dixon/ch_02_en.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tect%C3%B3nica_de_placas
http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Future_Is_Wild
http://pt.wikipedia.org/wiki/After_Man:_A_Zoology_of_the_Future
http://pt.wikipedia.org/wiki/Extin%C3%A7%C3%A3o_K-T
http://pt.wikipedia.org/wiki/Equil%C3%ADbrio_pontuado

 
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