sexta-feira, 10 de abril de 2009

Crônicas universitárias: mestrado


Era a comemoração de fim do ano do Departamento, salgadinhos, cerveja e refrigerante. Quem conhece meu orientador sabe que ele estaria lá. Martin adora comer... e comer muito, por onde ele passa não fica salgadinho sobre salgadinho.

Eu já tinha sido aprovado na seleção do mestrado e aproveitei a oportunidade para conversar com ele sobre meu projeto de dissertação. Eu só pensava em continuar com os Pentastomida, dar continuidade ao trabalho anterior. Havia um monte de fósseis estranhos do Cambriano (cerca de 450 milhões de anos) chamados “lobopodados”, devido às pernas não articuladas chamadas lobopódios. Além disso, há dois grupos de animais lobopodados ainda hoje vivos chamados Onychophora e Tardigrada e os fósseis dos pentastomídeos, descobertos e descritos desde 1985, indicavam uma possível relação evolutiva com esses animais.

Eu só lia, falava, escrevia, sonhava com essas criaturas:

Entre os mais inusitados, havia um grupo em especial chamado de Facivermis yunnanicus, que, assim como os pentastomídeos, possuem uma cefalização de lobopódios como adaptação para o parasitismo:

Falei dessas coisas para Martin que ouviu tudo entre um salgadinho em uma mesa e um petisco em outra. Por fim, perguntei:

Eu: - “Então, o que você acha?

Martin: - “Você não pensa em um desafio maior? Que tal os Annelida? Esse grupo deve ser parafilético e a chave da evolução dos animais metaméricos. Estão preparando um congresso internacional sobre Polychaeta no Brasil, poderemos apresentar o trabalho lá. Após esse congresso, haverá uma edição especial do Bulletin of Marine Science, onde os trabalhos apresentados poderão ser submetidos”.

Eu: - “Ok! Vou preparar o projeto.”

Em meu íntimo pensei: “Uau! Meu orientador reconheceu meu potencial!”. Era uma pausa nos meus estudos com pentastomídeos. Confesso que nunca deixei de pensar nesses parasitas. Como todo bom pesquisador, eu também me apaixonei pelo meu objeto de estudo. São parasitas feios e nojentos, mas se há alguém no mundo que gosta dos pentastomídeos... não sou eu. Na verdade sou é morto de apaixonado por eles!!! Tenho uma profunda admiração e curiosidade sobre esses animais estranhos. Bem, mas isso é outra história.

O mais importante aqui não é contar sobre essas coisas, porque publiquei tudo logo depois e está acessível para todos aqui na internet.

Bem, eu consegui mais três anos na universidade com bolsa e tudo mais, era o mais importante para mim. O problema veio logo em seguida, a CAPES reduziu tempo da bolsa para dois anos e meio em 1997, depois para dois anos em 1998.

Também houve um atraso de um pouco mais de um mês na bolsa em 1998. Lembro muito bem, porque foi quando tinha comprado o álbum "Nightfall In The Middle-Earth" do Blind Guardian. Um disco todo baseado no livro "O Silmarillion" de J. R. R. Tolkien. Corri atrás de ler o livro para entender melhor as músicas, mas na Biblioteca Central só tinha "O Hobbit", o qual terminei lendo. Nas livrarias em João Pessoa, só havia para vender "O Senhor dos Anéis". Comprei os três volumes e com o atraso da bolsa fiquei em casa mergulhado no mundo de Tolkien!!! Não dá para esquecer, não é?!

Do mesmo jeito da graduação, Alexandre novamente me convenceu a fazer parte da chapa única para a representação dos alunos da Pós-graduação em Zoologia. Lá estava eu de novo em meio às reuniões!!!

O atraso das bolsas também levou a nos reunirmos com os representantes da Associação dos Alunos de Pós-Graduação - APG/ UFPB. Foi nessa reunião que fiquei sabendo o significado de fazer mestrado no Brasil. Primeiro, era um curso de capacitação para o doutoramento, os alunos da graduação saiam muito crus, sem saber elaborar projetos, publicar, essas coisas. Segundo, era algo especial no Brasil, nos países desenvolvidos é comum os alunos irem direto para o doutorado sem passar por um curso de mestrado antes.

Foi o sucesso do PIBIC/ CNPq um dos motivos alegados para a diminuição do tempo de mestrado. Havia agora a capacitação dos alunos de graduação na pesquisa científica. O objetivo do MEC é ainda hoje aumentar o número de doutores no Brasil que deixa a desejar, por exemplo, quando nos comparamos a países vizinhos como a Argentina.

O professor Adelmar Bandeira foi crucial nesse processo. Ele era o coordenador na época e deixou muito claro para nós que deveríamos seguir as orientações da CAPES. O regimento da UFPB ainda estava em debate e lá constava um prazo máximo de cinco anos para mestrado. Adelmar foi um visionário e ótimo coordenador, enfrentou toda a minha turma e exigiu que terminássemos nos prazos da CAPES (se o regimento da UFPB permitia na época cinco anos, pedimos os três que foram dados para os alunos antes de nós). Adelmar permaneceu uma rocha e cumprimos na época nossos dois anos e meio, conforme a CAPES recomendava. Nós fomos a última turma de mestrado com esse tempo, todas as outras desde então possuem apenas dois anos. O resultado dessas medidas foi que nosso curso manteve seu conceito cinco (a maior pontuação para mestrado na CAPES).

Adelmar também foi o coordenador do projeto de implantação do doutorado em Ciências Biológicas (Zoologia) no DSE. Poucos na época acreditavam que esse projeto fosse aprovado. Foram anos muito difíceis para Adelmar, sua produção acadêmica caiu, ele perdeu sua bolsa de pesquisador, foi xingado de “ditador”, teve problemas de saúde, combateu firmemente todo o pessimismo e muitas vezes eu o vi sozinho lutando pelo mestrado e o projeto de doutorado.

Em 1999 a CAPES aprovou o doutorado. Nós reconhecemos o trabalho coletivo do departamento, mas agradeço do fundo de meu coração ao Adelmar, o nosso “macaco alfa” que liderou com êxito todo o processo.

Passei a quase residir no Departamento, estava lá de domingo a domingo. Minha permanência nas noites passou a ser rotineira. Eu me dediquei completamente ao meu trabalho.

Notei muitas vezes que não estava sozinho!!! Dos ratos, das baratas e até fantasmas que vi, não foram noites bem dormidas! Ah! Vi alguns casais por lá, mas nunca falei nada a respeito e só registro isso de passagem... rsrsrs!!!

Se eu tive crises na graduação, no mestrado elas foram muito mais intensas e devastadoras. Ao tempo em que eu desaparecia para dentro de minha dissertação, sentia-me mais sozinho do que nunca.

No meio do mestrado, minha amizade com Élvio Sérgio Medeiros (atual professor da UEPB) se intensificou. Era quase sagrado sairmos na segunda e/ou na terça para algum bar à beira mar. Do almoço até o outro dia, bebíamos muito! Nesse período conheci o irmão dele, Eduardo. Estávamos indo para Campeonato de Jogos Alternativos realizado no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA/ UFPB. As modalidades: cuspe à distância, porrinha, dominó, baralho e xadrez. Nós da Biologia perdemos tudo!!! Éramos muito mais nerds do que os nerds das humanidades presentes... rsrsrs!!!

Eduardo estava com uma camiseta do Slayer (Show No Mercy) e eu também usava uma da mesma banda (álbum Diabolus In Musica)... Ficamos amigos instantaneamente. Quando começamos a conversar sobre ciência, amei aquele menino que tinha lido os livros de Carl Sagan e até Richard Dawkins!!! Claro, Eduardo era um gordinho muito ranzinza... Soltava uns palavrões tão rápido, quanto chorava minutos depois. Eduardo fazia pose de casca grossa para esconder sua sensibilidade. Típico de nerds! Eu quem o diga... rsrsrs!!!

Para onde eu iria e o que faria após o final do meu mestrado?! Doutorado era a minha primeira e mais preferida opção. Eu compreendi o que estava acontecendo no Brasil muito bem. Enquanto víamos os discursos verborrágicos de um professor universitário no comando do Brasil (Fernando Henrique Cardoso) sentíamos na carne todo o sucateamento das universidades públicas. Não havia concursos, salários e bolsas (em todos os níveis) foram congelados. As faculdades e universidades particulares explodiram no final da década de 1990. Do meu lado, eu sentia que seria mais um mestre em biologia desempregado. Como explicaria isso aos meus pais? Como? Eu tinha ido mais longe que pude, mas ficara desempregado com dois diplomas em minhas mãos?!

Nas aulas de Zoologia de Campo, eu lembro de caminhar pelas trilhas da mata em Brejo dos Cavalos, no município de Caruaru - PE, com walkman nos ouvidos escutando minha fita K-7 do Angra (Freedom Call)... Eu andava em uma fossa existencial típica dos acadêmicos.

André Rinaldo Senna Garraffoni e Gustavo Sene Silva vieram da USP no início de 1998, sob a orientação de Dalton de Souza Amorim. A equipe reunida em João Pessoa traçou o esboço que apresentaríamos alguns meses depois em Curitiba-PR no "Sixth International Polychaete Conference".

Em agosto de 1998 todos nós nos encontramos na Universidade Federal do Paraná e foi para mim a maior lição de sociologia da ciência que vivenciei até hoje. Tantos especialistas em poliquetos prestando quase reverência as figuras tradicionais de poder como Kristian Fauchald e o seu pupilo mais ilustre, Greg Rose. Advinhem quais idéias nosso trabalho discordava? Pois é!!! Estávamos com um trabalho que divergia logo de Rose e Fauchald! Querem mais?! Éramos os únicos falando em bom tom que o grupo tema do congresso não passava de parafilético, ou seja Polychaeta não existia naturalmente, não da forma tradicional que esse táxon foi proposto.

Martin apresentou o trabalho e queria que cada um de vocês estivessem lá para ver. Ele fez isso com umas transparências que preparou uma noite antes. Ele é averso a recursos audivisuais, imaginem?! Foi um reboliço na platéia. Eu senti uma admiração muito grande por ele estar ali e enfrentar tudo, porque os resultados de sua pesquisa diziam o contrário. Pensei, "isso é ser um cientista de verdade! Sem medo de escárnio, defendendo hipóteses contra o establishment"! O resultado? Foi assim, Martin havia me falado que foi muito bem recebido no domingo, estava conversando com todos e tal, após a apresentação, muitos ficaram em silêncio e teve até “pesquisador tupiniquim" que virou as costas para ele e Dalton. Não lembro o nome de um pesquisador mexicano que nos procurou depois, mas ele foi enfático com Martin: "você tem coragem" (as palavras em espanhol foram: "Tiene huevos grandes!" rsrsrs!!!).

Se isso aconteceu com nossos orientadores, imaginem para eu, André e Gustavo. Ficamos meio pelos cantos largados e eu mais ainda! André e Gustavo aproveitaram a oportunidade para procurar orientação em seus mestrados. Falaram com Paulo Lana (UFPR) e deu tudo certo para eles! Hoje já são doutores, estão muito bem empregados e felizes da vida.

Registro de passagem por pura curiosidade, André e Paulo Lana descreveram uma nova espécie de poliqueto em 2003 e a batizaram Terebellides sepultura, homenagem a maior banda de heavy metal brasileira em todos os tempos!!! Isso é coisa de meu amigo André!!!

Leiam: [click] http://www.scielo.br/pdf/isz/v93n4/a02v93n4.pdf

Bem, sei que as coisas não são assim tão simples, nem tão pouco temos a razão sempre. André muito bem me alertou meses depois para não exagerar na postura de que sofríamos discriminação acadêmica por sermos de um país pobre. Claro, estar fora dos centros de ciência do mundo sempre atrapalha.

Eu delirei muito na platéia, pensando tudo ao inverso. Se nós fossemos as estrelas, se fossemos nós os europeus, ou norte-americanos adorados pelos latinos e orientais de países pobres?! Vi como as meninas se atiravam para Greg Rose e como invisível eu era. Se eu fosse ele... iria para cama com todas... rsrsrs!!! Eu me comportava tipicamente como um macho gama, ou ômega diante do alfa. Com planos de derrubá-lo, reunir os fiés e assumir a liderança do grupo!!! rsrsrs!!!

O nosso trabalho foi para mim o mais complexo e desgastante pesquisa que já participei. Apresentado em 1998 com título "What if Polychaeta, Annelida and Articulata are not monophyletic? Articulating the Metameria", recusado um ano depois nos Estados Unidos e mais alguns anos mais tarde na Alemanha. Não desistimos e conseguimos publicá-lo em 2003 no Brasil (o título ficou "Polychaeta, Annelida, and Articulata are not monophyletic: Articulating the Metameria (Metazoa: Coelomata)") na Revista Brasileira de Zoologia. Desde a preparação da primeira versão submetida à publicação passaram-se seis anos. Tenho orgulho dessa publicação e mais ainda de ter trilhado toda essa história ao lado de Martin, Dalton, André e Gustavo. Memorável!

Para saber mais sobre esse trabalho leiam:
[click] http://www.scielo.br/pdf/rbzool/v20n1/v20n1a06.pdf
[click] Quando éramos vermes
[click] Sociologia da Ciência
[click] Hipóteses
[click] Implicações

Enquanto isso, meus amigos dispararam a publicar! Era o início da era da publicação contínua que iria nos atingir em cheio a partir de 2000. Ah! Já existia o banco de currículos Lattes do CNPq, mas foi em 1997 que fomos todos obrigados a fazer nossos currículos, caso contrário perderíamos nossas bolsas. Na época fiquei muito chateado, porque não queria colocar na internet meu currículo com apenas um artigo publicado. Hoje meus orientados fazem isso para concorrer a seleção de bolsas, seus currículos iniciais têm apenas o endereço e crescem com o tempo de estágio!

Não tive o mesmo desempenho que a graduação. Eu fui o primeiro mestre apenas aprovado (sem a tal “distinção”). Eram novas regras do programa e a formatação de minha dissertação não havia ficado boa.

Pior, solicitei orientação ao Dalton para o doutoramento e ele disse um “não” bem sonoro. André e Gustavo seus orientados já haviam levado os deles e tinham me prevenido que isso aconteceria lá em Curitiba. Mesmo que meus amigos estivessem certos, eu precisava tentar.

Aí fiquei assim aos meus 28 anos de idade: desempregado, sem dinheiro, sem perspectiva de fazer doutorado e até minha dissertação foi a primeira apenas ‘aprovada’.

Sinto pelas palavras que usarei agora, mas somando tudo, ao final do meu mestrado... “Eu fiquei na merda!!!”

O doutorado na Zoologia, aprovado no final de 1999, iria se iniciar em 2000, mas eu não poderia me inscrever, porque só possuía um artigo publicado e o mínimo era dois (no prelo, ou publicados).


Dalton na banca de minha defesa de dissertação falou que a Editora Holos estava para lançar uma série intitulada Monografias, Dissertações e Teses. Meses depois, Martin pediu que eu preparasse minha dissertação para submissão nessa série, recebemos o aceite para publicação em tempo para minha inscrição na seleção do doutorado.

Passei em primeiro lugar! Recebi a notícia com um alívio no coração... As coisas pareciam melhorar. Imaginem, em casa, ao invés de desapontar meus pais, eles ficaram felizes às lágrimas, porque seu filho ia se tornar “doutor de verdade”. Minha mãe fez questão de falar isso para todos os vizinhos!!!


Certa vez, na parada de ônibus, cá da minha solidão de nerd, escutando heavy metal com meu walkman, vi uma menina de minha rua me “dando mole”. Até as mulheres passaram a me olhar diferente, pensei com minha camiseta preta de estampa do Sepultura.

Meus dias de doutoramento estavam para começar...

7 comentários:

Unknown disse...

Adorei, melhor que o da Graduação!

Emmerson disse...

Amigo, gostaria de fazer uma pequena correção, a APG não existia legalmente e estávamos tentando aprovar o estatuto para criação da mesma. Terminei o doutorado e a APG ainda não estava regularizada.

Sua história acadêmica não é muito diferente dos, muitos, doutores da nossa geração. Ela é um relato fiel e preciso de um aluno de pós do final da década de 90 e começo da atual.

Parabéns pelo Blog, eu me vejo aos vinte e muitos, com todos os problemas e crises, lutando por um pedaço de "sol científico" ou uma pequena promessa de ascender socialmente (emprego), pois alguns tinham filhos e esposas. É uma ingenuidade acreditar que o caminho da pós foi trilhado, e vencido, só pelo amor a ciência. Outros fatores sociais também contribuíram, e você deixa isso bem claro no texto.
Minha filha foi o catalisador da minha vida.

Emmerson disse...

Por que os seus amigos, que participaram efetivamente desta história, não escrevem aqui?

Waltécio disse...

Obrigado pelo comentário e sugestões no texto, Débora!
Beijos!

Waltécio disse...

Obrigado pela correção, Emmerson! Verdade, a APG foi uma necessidade nossa naquela época de atrasos de bolsas, embora tenha ficado nas intenções.

Concordo com você sobre as motivações pessoais e nosso meio social, cultural e econômico como determinantes para nossas vidas. Não somos apenas feitos de genética! Somos sim, todos frutos de nossas realidades históricas.

Ah! Você será muito bem citado no próximo post sobre o doutorado. Não deixarei de registrar nosso campeonato de xadrez, onde você sempre perdeu... rsrsrs!!! Claro, também nunca desistiu!!!

Terça-feira passada conversei com Alexandre pelo telefone. Entre um assunto e outro ele comentou sobre este Blog. Concordou com tudo e até me parabenizou! hehehe!!!

Eduardo vez por outra escreve por aqui. É só ficar de olho.

Obrigado pelos comentários, um grande abraço saudoso, meu velho amigo!!!

W.

Emmerson disse...

Vale uma ressalva, a última partida, disputada com você e Alex, eu venci, não esqueça.
Parabéns pelo blog e sempre que puder escreverei aqui.
No começo achei seus textos muito...pesados de discordantes, mas, na minha opinião, você melhorou muito.

Francisca Rolim disse...

Hehe... A mitologia da minha juventude. Você não tem ideia de como eu estou gostando de ler essas suas histórias aqui.

Saudades meu velho.

 
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