sábado, 6 de dezembro de 2008

Uma breve história incompleta sobre meu tempo


Aproxima-se meu aniversário em dia 31 de dezembro, quando completarei 37 anos de vida após o parto. Como sei que ninguém estará lendo Blogs nesse dia, escrevo aqui uma breve história de meu tempo por pura nostalgia.

Eu tinha cerca de 12 anos, morava na cidade de Bayeux - PB e estudava no Colégio Estadual D'Ávila Lins. Não lembro o motivo que me levou até a Biblioteca Municipal, mas sei que fui espontaneamente conduzido por curiosidade.

Estava eu e outros colegas da escola. Lembro de procurar e folhear livros por causa das gravuras. Parei para ler um: "Moby Dick" de Herman Melville. Simplesmente continuei lá, parado e absorvido pela história.

Daí por diante, todos os dias, no horário do intervalo ia até a biblioteca ler Moby Dick. Levou semanas, mas era como um ritual sagrado. Não era a baleia branca, ou a obsessão do capitão Ahab que me aprisionaram, mas sim a descrição da rotina de Ismael através do mar, as baleias capturadas, a sensação de estar tão longe de tudo em meio a uma das maiores aventuras de minha vida.

Depois que conclui Moby Dick, comecei a ler "As Viagens de Marco Polo", mas não consegui terminar. Acho que fiquei intimidado pela curadora da biblioteca, ou simplesmente fui pego pelo período de provas na escola.

Ler passou a ser rotina para mim, algo como procurar e descobrir as coisas. Só havia um problema: não tínhamos livros em casa. De forma estranha passei a ter um prazer enorme em ler os livros didáticos da escola. Física, Química, e, sobretudo, Biologia me fascinavam. Lá haviam respostas do porquê do céu ser azul, como se formam nuvens (chuvas e raios), a diversidade animal e vegetal. Estranho, porque o mundo mudou drasticamente para mim, mudança é aprendizado.

Não fui motivado por nenhum professor nessa época. Sou uma exceção em meio aquele tempo, onde a precariedade da escola pública simplesmente era um descaso político-social... infelizmente ainda é.

Nesses anos de 1980, um grande amigo meu chamado Edilson (o "Didiu") me emprestou um monte de LPs de várias bandas: A-ha, The Cure, Iron Maiden, Scorpions, Saxon, Whitesnake, etc. Didiu também me emprestou um livro chamado "Pensamentos" de Blaise Pascal. Tanto os LPs, quanto o livro pertenciam ao amigo dele, Walter.

O fantasma de Pascal passou a habitar minha mente.

Cerca de um ano depois, recebi uma visita de um garoto chamado Getúlio Luis de Freitas. Ele me pediu meus discos do A-ha emprestado. Getúlio morava há dois quarteirões de minha casa, mas não lembro de esbarrar com ele nas ruas antes disso.

Eu estava em crise de adolescente, tentando entender as coisas do mundo. Já estava cético com todo aquele mundo de personagens míticos invisíveis (santos e seus corolários), que misteriosamente pareciam favorecer ricos e ignorar toda a dor dos pobres. Não sabia na época, mas minhas raízes estavam já cravadas no ateísmo.

Getúlio era filho de uma professora. Ele teve incentivo para leitura na sua casa e livros, muitos livros. Foi ele quem no início de nossa amizade emprestou-me todos os livros de Kafka e Nietzsche. Sentava com ele ao portão de minha casa e conversávamos sobre o universo, seres vivos e um pouco de sociologia.

Ali em um subúrbio pobre, numa periferia abandonada... Costumava ler, conversar com Getúlio e admirar estrelas.

Bem, Getúlio não era de festas, e também não era um garoto muito sociável. Por isso, minha embriaguez e procura por namoradas foram feitas como qualquer adolescente normal da década de 1980. Tinha outros colegas e saia nas noites de sábado.

Mas quem estava do meu lado sabia, o quanto eu era "esquisito".

Meus pais não entenderam minha progressão pelos livros e o teor de minhas perguntas. As músicas que escutava já não eram as do Bon Jovi (considerado uma rebeldia na época), mas Metallica, Megadeth, Slayer... Estava no ápice de meu inconformismo.

Enquanto servi o exército em Brasília no ano de 1990, Getúlio passou no vestibular para Ciências Biológicas na UFPB. Trocamos correspondência sobre cerrado, animais e aventuras na natureza selvagem. Quando retornei à Paraíba, ele novamente foi minha inspiração. Resolvi ser biólogo e abraçar profissionalmente o planeta vivo que já amava na época.

Os livros que lembro dessa época enquanto estudava para o vestibular ainda estão vívidos em minha mente: "A Bagaceira" de José Américo de Almeida, "Dom Casmurro", "Contos" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas" de Machado de Assis, "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, "O Cortiço" de Aluísio de Azevedo e "Os Sertões" de Euclides da Cunha.

Lembro que tirei o primeiro lugar nos classificados para Ciências Biológicas na UFPB em 1993.

Didiu foi assassinado! Um marginal bateu-lhe com um porrete na cabeça e seu corpo ainda vivo caiu em um braço de rio que pertence ao estuário (mangue). Segundo laudo, morreu afogado. Passaram-se dias até encontrarem o seu corpo em decomposição. Lembro do cheiro terrível, do parente dele que soltou a alça do caixão vomitando, lembro de substituí-lo, carregá-lo até a cova. Meu amigo assassinado.

Sempre que escuto U2 e The Cure lembro dele em crise. Enquanto tínhamos nossos 17-19 anos, ele estava com seus 30, era pobre, desempregado, gostava de maconha, rock'n'roll, foi gótico, new wave e punk... ou tudo ao mesmo tempo. Didiu via a vida de forma diferente das pessoas comuns.

Na universidade, eu e Getúlio tomamos caminhos diferentes. Encontrei grandes amigos por lá como Alexandre, Élvio, Eduardo, Emmerson, Quick, Akemi, Rocha, Gindomar, entre as desculpas que peço por não citar todos.

Participei de confrarias literárias e científicas como a dos Lunáticos e dos Quatro Elementos. Senti-me em casa, porque sempre quiz estar ali.

Todos os meus amigos confrades hoje são professores universitários. Uns fizeram doutorado no Brasil, outros na Austrália, Estados Unidos e Inglaterra. Eu estava entre gigantes, rindo com eles, discutindo sobre Ecologia, Heavy Metal, Evolução e Comportamento Animal!

Não tinha uma obsessão por uma baleia branca, mas fui um menino que adorava a rotina no navio. Apaixonei-me pela ciência e todos os caminhos que me levam para o mar.

A vida, a história, o mar e as baleias continuam!

6 comentários:

Getulius disse...

Muito legal tudo isso que você escreveu, Boca. Pensando hoje, talvez uma das coisas do afastamento pode ter sido um certo ciúme das amizades. Eu tinha naquela época, mais agravada ainda pela situação financeira, um preconceito reverso com alguns que, mesmo sem saber, identificava como de um grupo social ao qual eu não pertencia. Talvez tenha perdido boas amizades por isso. Serguei foi uma excessão naquele grupo, pois eu já o conhecia de nossos poucos dias de humilhação no quartel do 15 (fomos colocados num tal pelotão dos doentes, antes de dispensados - mas as doenças eram fictícias!). No mais, 2 anos depois de sua entrada que conheci Nena, que me fez esquecer todas as mulheres com as quais eu me relacionava na época, e mesmo daquele adjetivo utópico "milena" me deu mesmo um rumo pelo simples fato de querer estar ao lado dela. E hoje estamos unidos mais ainda. Obrigado pelas boas referências à minha pessoa, acho que foram mesmo anos imprescindíveis para nós dois, para sermos o que somos hoje, e o caminho podia ter sido bem diferente para ambos.

Getulius disse...

Ah, só pra explicar o link que há entre aquele texto e o fato de ter conhecido Nena. Você falou que seguimos caminhos diferentes. E eu passei, acho que mais ainda após conhecer Nena, a querer ser mais acertivo, resoluto e determinado no que tinha de fazer. Passei a querer mesmo sair da academia e resolver minhas pendengas. Fui dar aula (dar, já que ganhava tão pouco, é o verbo), ser técnico em informática, fazer concursos (o que me levou a ser oficial de justiça, função até então impensável ao rebelde aqui).

Getulius disse...

Opa! Você não pode esquecer a roubada em te pus quando ainda não tinha entrado no curso (ou tinha?): puto com uns cortes de árvores entre os dois dptos da biologia, chamei jornais, briguei com o diretor de centro e vigilância, e pusemos diversos troncos no corredor. Recebi um prêmio de ter uma bolsa de iniciação transferida para outro. Mas foi muito bom, pois acho que mostramos à academia que alguns não eram cérebros vazios a serem preenchidos por uma "de"formação acadêmica.

Waltécio disse...

Por isso a história está "incompleta". Não deu para contar todos os detlahes.

Compreendo as coisas hoje assim como você. Na comunidade do Orkut da URCA, escrevi sobre calourada: "Quando entrei na universidade, eu filho de um frezador (proletário) achava que todos eram "boys", tinha um ódio de classe cheio de preconceitos. Mas encontrei grandes amigos independentes de sua posição econômica, social, ou curso na universidade."

Também tive meus receios, mas senti muito na época seu afastamento. Além de amigo, você era como um ídolo para mim.

Sempre gosto de falar que namorar com Sandra e a amizade com Alexandre me socializaram... Desisti de querer destruir a humanidade e resolvi assumir meu lugar nela!!!

Sandra para minha vida foi equivalente a Nena na sua. Mulheres de verdade com imperfeições humanas fora da sombra daquele amor idealizado e perfeito da "Milena".

A "roubada" foi muito legal!!! Cheguei na Universidade fazendo protesto ambientalista, antes mesmo de efetuar minha matrícula!!!

Um grande abraço, meu velho e querido amigo, Getúlio!!!

Inácio Carvalho disse...

Uma breve, agitada e instigante história, caro cientista roqueiro. Vivi algo parecido enquanto morei em Sobral até o final dos anos 70. Muita inquietação juvenil, histórias e ousadias que marcaram uma período e uma galera da minha cidade. A juventude fez e faz muita coisa nesse muito, seu Waltécio, só que muito do que ela faz ou fez é desprezado, ignorado ou quando muito socio-antropologicamente estudado e depois vai parar nas prateleiras acadêmicas. Ainda há muita tese e a prática tá apenas se iniciando.

Já que você antecipou uma breve história e provavelmente estarei entre os que você disse que não esatrão lendo blogs, meu parabéns pelos 37 e some mais tantos tantos pela frente.

Waltécio disse...

Concordo, camarada! O quanto de histórias estão por aí em construção... e o quanto foi feito na minha saudosa década de 1980!!!

Ah! Obrigado pela lembrança!

Abraço,

Waltécio

 
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